Passado de Copas do Mundo
Chegou na delegacia cheirando a álcool e falando portunhol:
- Me pasé de copas. Dormi “na terminal” de ônibus, me levaram o dinheiro e “papeles”. Preciso ajuda pra passar a fronteira e voltar pro Rio Grande.
O homem teria uns quarenta e cinco anos, corpo de atleta, bem trajado, um lindo casaco de couro. Teve sorte de não lhe terem levado o luxuoso abrigo. Tinha cara de sono, na boca um cabo de guarda-chuva que cheirava a cachaça barata. A secretária pediu para aguardar na sala de espera. Entrou na sala do chefe, saiu em seguida e concedeu-lhe a entrada.
A autoridade foi logo ao assunto:
- Entendi. Bebeu demais, dormiu na rodoviária e lhe roubaram dinheiro e documentos. Quer fazer um BO?
- Queria, pra poder tirar documentos novos e poder chegar em casa.
O comissário, estômago sensível – uma moça, diziam - custava a segurar o vômito, por causa do cheiro de álcool que tinha impregnado corpo e aura do desafortunado. Fazia frio, mas o pobre suava. “Pasaste de copas, entonces”, puxou assunto o comissário, ensaiando um sotaque e um idioma só entendido na fronteira.
O coitado, desconcertado, cara de arrependimento, sem lenço e sem documento, só lembrava que tinha um pai, militar reformado, que poderia mandar-lhe dinheiro do Rio Grande. E claro que ia morrer de vergonha ao saber do filho e sua penúria.
- No consulado vão te dar um documento que serve até chegar ao Rio Grande. Cruza a fronteira. Lá você se coordena com a polícia e a assistência social local e tudo sairá bem. Você fica num abrigo de sem-teto até seu pai lhe enviar dinheiro ou a prefeitura comprar sua passagem. Nada de dramas, logo você estará em casa, seu pai não vai ter muito tempo para sentir a sua falta. E não faz outra dessas, já está bem grandinho pra essas aventuras.
Como a história do gaúcho perdido terminou, não sei. De qualquer maneira, esse relato é apenas uma digressão para compartilhar as verdadeiras Copas, pelas quais passei e, no mais das vezes, me passaram. Falo das Copas do Mundo, assunto atualíssimo neste junho de 2018. Pois sim. A primeira Copa de minha vida, a de 1950, passeia-a no berço, com um mês de vida, na certa aumentando a infelicidade de meu pai pelo Maracanaço, a derrota de julho daquele ano para o Uruguai.
A Copa de 1954 passou despercebida, na certa eu tinha mais o que fazer. A primeira vez que me liguei ao assunto foi no Largo do São Francisco, num domingo de maio de 1958, em Pitangui, MG. Estava brincando por ali e ao mesmo tempo escutava a apaixonada narração pelo rádio de um jogo Brasil e Paraguai, preparatório para a Copa. O Brasil venceu de 5 a 1 e daí partiu para ganhar seu primeiro título. Na casa de meu avô paterno o rádio berrava a sequência de gols e, entre outras coisas, aprendi que a seleção paraguaia era “seleção guarani” e que Brasil era “seleção canarinho”. Tá ligado, mano?
A propósito desse primeiro título, no dia da final, a Suécia abriu o placar no começo do jogo. Meu pai sofria com a ameaça da repetição do Maracanaço em versão viking, pois o Brasil, outra vez, era franco favorito e a Suécia não tinha qualquer cacoete futebolístico. Minha mãe não era nenhuma expert no assunto, mas se preocupava e sofria com o sofrimento do marido. Mas tinha promessas a cumprir e algumas ladeiras a subir, até chegar à capela da Penha. Ia levar um dos filhos, vestido de Santo Antônio, para acompanhar a procissão e pagar promessa. Sem entender futebol, mas bem entendedora da paixão de meu pai pelo jogo, saiu dizendo, categoricamente:
- Antes de chegar na ponta do Beco, o Brasil vai empatar!
Ela estava mesmo virando a esquina da rua, quando o Zé Albino, vizinho quase de frente, saiu na janela pra dizer:
- Empatou.
Daí pra frente, todos sabem o desfecho e o Google tira eventuais dúvidas.
Em 62, nossa casa estava em reformas e se viam os vídeo-tapes dos jogos à noite, acho que uns dois ou três dias depois, numa sala cheirando a tinta e cimento, com a presença do saudoso Zé Emídio e outros aficionados do esporte bretão. As Organizações Novo Mundo-Vemag patrocinavam.
Em 66, foi a grande tristeza. Saímos nas oitavas, Pelé foi massacrado pelo português Vicente e, na rua da Fábrica, no bar do Zé Vitorino, o povo, entristecido e alcoolizado, odiou os húngaros que nos tiraram de vez daquela Copa.
Em 1970, a glória! Estudante universitário em Belo Horzonte, saí no fusca do meu primo Jésus de Deus, o “Zinho”, para a Praça Sete e o povo se confraternizava na rua, depois da chinelada na Itália. Dizem que até nos calabouços da Repressão guardas e presos políticos se confraternizaram e fizeram brindes ao tricampeonato. Dizem...
De 1974 em diante o maravilhamento com as Copa do Mundo e com a “seleção canarinho” foram esmaecendo. O título de 1994 teve sabor de picolé de chuchu, vocês conhecem? Em 2002, por exemplo, dormia na hora em que recebiam a taça, depois de alguns excessos na véspera. Há várias explicações para esse desmaravilhamento, mas acho que o principal era ter chegado à consciência da imprecisão humana que se revelava na assimetria, por exemplo, das Guerras Mundiais.
Quando criança, achava que as guerras mundiais também tinham data pra começar e encerrar, periodicamente voltariam e, como as escolas de samba, tinham área de concentração e dispersão. Tudo muito organizado e previsível. Em especial, me incomodava a assimetria das duas guerras mundiais: 1914/1918, parecia perfeito: duração de quatro anos, afinava com o intervalo entre as Copas. Mas a guerra começar em 1939 e terminar em 1945 não batia bem. Era assimétrico, muito quântico, meu espírito andarilho precisava ver mais ordem no Universo.
Agora, na delegacia, o homem que “pasó de copas” diz seu obrigado e sai com o BO em punho. Agradece ao comissário, à secretária e sai cantarolando, deixando pelo caminho o odor da madrugada mal dormida.
Hoje, quem está “pasado” de Copas sou eu. Desde 1950 que elas marcam o tempo, uma ampulheta implacável que, a cada quatro anos, vai se tornando menos interessante. Tão desinteressante como era para aquele bebê envolto em cueiros, mantas e faixas, que berrava no berço, totalmente alheio àquele evento da tarde do dia 16 de julho de 1950, quando Alcides Eduardo Ghiggia demonizava Moacir Barbosa Nascimento para o resto da vida.