Telhado de vidro
Encontro-me há tanto tempo aqui na minha rede que acabei por observar o Cruzeiro do Sul. Vi também nascer duas estrelas muito brilhantes depois dele, que subiram apáticas e reluzentes no escuro firmamento. Sou um analfabeto morador de rua que olha para as estrelas e segue a sua navegação, sem saber os seus nomes. Vigio-as a partir do meu imóvel sem móveis.
Sou um homem solitário, mas não sou triste. A noite ainda é uma criança para aqueles que como eu só as têm como companheiras. O tempo avança rapidamente e deixa-me numa posição ingrata e sem saída. Quando não sinto junto a mim a presença do mar, sou um ser perdido e lançado nos braços do vento.
Por obra do acaso, estou aqui nesta noite estrelada, serena e acompanho com paciência a presença de um cometa e o seu rastro que percorrem uma imensidão como se fosse um feixe de luz da minha pequena lanterna. Se o João me telefonar, digo-lhe que não há nada de novo. Logo, mais adiante, terei o nascimento da minha Lua, criatura doce e indecifrável. É por causa dela que ainda me encontro acordado. Sinto muito sono e pressinto que, a qualquer momento, posso adormecer na minha rede.
Foi Deus que me colocou aqui ao dar-me este presente. Vou riscar um fósforo para poder me manter acordado mais um pouco e iluminar todo o espaço em volta. Olho no meu relógio e sinto uma certa inquietação. Ainda faltam dezoito minutos para o nascimento da minha Lua. Respiro aliviado e procuro alinhar o meu corpo numa posição mais confortável. Não posso perder esse espetáculo da Natureza. Afinal, não é todos os dias que um morador de rua é abençoado pelas estrelas.
Agora, posso até pensar na ideia de dormir mais tarde por aqui, numa casa pequena com telhado de vidro. Adormecer impávido, sereno e quase feliz. Poder sorrir, esquecer e sonhar como uma criatura de Deus.