Pão Francês
Eu adoro pão francês. Assim é, como é chamado o pão de padaria, aquele filhote de filão, o mais famoso e o mais comum de todos os pães. Mas adoro mesmo o pão francês recém-saído do forno, quente, daqueles que se abre com a faca de serra e a fumaça logo se pronuncia, anunciando que vai derreter a manteiga que será passada no seu interior. Eu adoro pão francês. De verdade. Acho que nunca tive um prazer gastronômico tão arraigado, tão evidenciado, tão divinamente prazeroso como o de comer um pão francês. Principalmente esse, quente, recém assado, fresco, crocante, divino.
Dia desses, estava eu com essas maquinações, reflexões, ou seja lá como queiram chamar esses pensamentos que me atravessavam a cabeça, quando me propus a seguinte questão: será que quando morrer, for desta para melhor, para a terra do nunca, para o andar de cima, terei pão quente? Será que, com a força da vontade, da mente, ou algum órgão que faça algum esforço soberbo, terei poderes de, (...como era mesmo o termo? Ah! Essa minha cabeça já não está ajudando muito...), ah! sim, “materializar” um simples pão quente, lá onde estarei logo mais em breve (sobre esse “lá” não cheguei a nenhum acordo comigo, portanto não saberia dizer onde é “lá”...) ?
Ontem mesmo, antes do meu nonagésimo segundo aniversário (digo antes, porque já eram onze e cinquenta e dois da noite e logo mais seria um novo dia...), parei diante de um pão francês e a xícara de chá que teimava em tomar à noite, contrariando, portanto, as recomendações médicas e concordando, plácido, com minha gastrite e minha insônia. Olhava, ali, o objeto de meu desejo de há muitas décadas, tentando, literalmente “hipnotizá-lo”. Queria pão àquela hora. Mas o queria quente. Aquecê-lo ao forno, ou usar quaisquer outros métodos similares, não seria de modo algum, recomendado para torná-lo o pão quente que tanto venero. Olhava fixo para aquele egresso dos fornos sacros da panificadora da rua de trás, literalmente tentando aquecê-lo com minha mente, meus poderes telepáticos ou qualquer maluquice dessas. Fiquei longos minutos olhando fixo para o dito cujo. A xícara de chá fumegante parou de fumegar, o pão não aqueceu, e eu, frustrado em boa medida, fui dormir.
O sol já ia alto quando despertei. Achei aquilo estranho, já que fazia muitos anos que acordar cedo tinha se tornado um hábito. Não dormia mais do que cinco ou seis horas por noite e, pelo visto, tinha ficado na cama o dobro disso. Levantei-me ainda sonolento e fui até a cozinha. Fiz o café como de costume e sentei-me para apreciar meu amado pão francês. Nem me dei conta que aquele que havia deixado em cima da mesa no dia anterior, não estava mais. “Devo ter guardado” pensei. Já não era a primeira vez que não me lembrava de ter feito ou não algo no dia anterior. Esta seria apenas mais uma vez. Apanhei o pão dentro do saco de papel e me servi de café fumegante, recém preparado. Estaquei mais uma vez, olhando para o espécime antes de devorá-lo, e desejei algo de forma automática, usando o que ainda sobrava de lucidez, querendo de verdade que aquele pequeno e inocente pão, estivesse quente. Por um instante, cheguei mesmo a acreditar que senti as ondas de calor emanando do pedaço de pão. Por um brevíssimo e fugaz instante, pareceu-me vislumbrar as cascas do delicioso pãozinho recobrarem seu frescor e sua crocância, tornando-o jovem outra vez, fresco, novo de novo. Como que saído de um estado de hipnose, dei de ombros e bebi um gole do café quente. Apanhei a faca com uma mão e com a outra o panem nostrum. Sem perceber, ato reflexo, introduzi a faca e cortei. Lambuzei a faca com a manteiga e a transferi para o recém cortado filhote de filão. A manteiga derreteu-se toda e as cascas muito crocantes estalaram com a primeira mordida. Então, de repente, eu podia comer pão francês todo dia, fosse a hora que fosse, quente e muito, muito fresco.