O fantasma do bule

Como se fossem rostos de pássaros mudos que observassem o horizonte em busca de retorno. Dez anos se passaram desde a hora em que partiu, quando em maio passamos a viver sozinhos. Toda pluralidade esquecida recebeu o silêncio como adeus. O musgo e a umidade tornaram mais frágil a solidez do espanto. O convite da dor era tanto que não se podia fazer idéia do que devíamos rapidamente encontrar. Algo que dissipasse a ausência, e ao mesmo tempo, sua presença incomum. Presença que iluminava o quarto, a sala, a varanda, no momento em que somente as trevas abusavam de seu domínio. Eram cinco horas e meia quando partiu e nunca mais ninguém ficou sabendo do seu paradeiro. Germínio e Agnes se sentaram e ficaram quietos, sem palavra na alma. Por mais interessante que me parecesse pessoalmente, a questão de ser infinitamente ausente, não se me afigurava ao espírito susceptível. O modo como se manifestava demonstrou o contrário: dezessete vezes penaram e dezessete vezes esconderam o afeto, e no correr dos anos havia sido sempre assim. Depois deste lapso de tempo era inútil lembrar do passado fascinante sem ensoberbar de alegria a tristeza novamente. Mesmo diante de um átimo de lembrança. Qualquer frasquinho de louça da índia, som ritmado de cardação, de frase concebida pelas palavras aladas, se tornava real novamente.

Deixo-me quieto para refletir um instante este fato, menos individual do que a primeira vista parecia. O drama de repousar no éter em condições de infinito. Na verdade tornara-se um livro sem título de um autor sem nome no perfeito movimento para ensaios da alma encantada, mas inquieta.

Criatura tão perfeita e desprovida de interesse. Abria horizontes tão vastos sem saber que produzia a imagem auto-excitadora das estações e dos dias. Repousava nos raios que esclareciam a chuva para que tudo germinasse. Reaparecia com frio no inverno pelas ruas e todos corriam para saber uns dos outros onde ela se encontrava e quando havia chegado. No chão encontraram vestígios de pegadas mal impressas na areia que foram contempladas por olhos emocionados. Que só a beleza não é um justo valor a multidão compreendia. (Como o destino do homem sem ser sempre o mesmo). Sua lembrança surgia tal e qual objeto do silêncio contrabandado do eco num fino piado de ave, (novo augúrio). E Agnes nada dizia, muito embora fosse reparar um estrago de coisa oculta com ainda maior ocultismo. Procurava deter o jogo da ignorância com sua calma enganadora, para recriar um instante de sonho e sonhar conjuntamente. Assim sobre-rondava ilusões plantadas por desejos incultos. Já Edina descansava compreendendo, pois desejava reverter melancolia do infinito inalcançado, abrindo janelas do quarto, deixando passar insetos; pairando sobre a cama. Rindo das piadas solenes que a ausente em branco lhe contava quando aparecia abstrata pelas paredes caiadas.

Todo este universo social escondia o seu desaparecimento. A consciência da culpa regia um comportamento de erros e desgostos. Que culpa havia? Acontecimento nada incomum porque muitos estavam procurando um rumo e carregando consigo as pedras da saudade. Ninguém teve tempo de lhe dizer que ficasse. Que era importante. Que sem ela suas vidas seriam tal e qual um afeto irrecuperável, um hiato, um inferno. Ninguém teve tempo de lhe dizer simplesmente: fica, não vai embora! Sem ter que repetir e reproduzir o quanto voltar no vazio é deplorável. Deplorável sem matéria que enterneça.

As causas finais proclamam forças para lançar vantagens e começaram a criar um foco próprio para encontrar o espectro nos dias de chuva e vento. Em algum lugar devia prosseguir a energia, em algum ponto. Ficavam horas divagando novos espaços, sentados em torno de conclusões tão absurdas, mas tão absurdas, que o dia amanhecia para lhes doar claridade. Agnes descreveu um ponto distante onde havia habitação viva, vista em sonhos, num lugar tão impremeditado, que todos correram aos antigos livros do porão em busca de uma definição. Nada encontraram. Havia nesse rudimento o novo sentido divisor ao mesmo tempo em que representava o lugar para prosseguir. É lá que ela está e para lá devemos ir! Era o esforço da imaginação que aplacava o adeus insuportável. Inexoravelmente. 15:35