O vício

Em casa ninguém é “gourmet” depois das vinte e duas horas. Madalena compreendeu que algo estava ocorrendo. Levantava-se da cama altas horas da noite para bisbilhotar a geladeira. Depois de certificado o armazenamento da salsicha retornava para debaixo das cobertas. Nas quintas-feiras seguia às compras sem esquecer desse item.

A luz artificial do apartamento lhe deu a idéia da existência de enigmas no mundo: o primeiro casamento arruinado. O segundo casamento arruinado. Julgou que a sua vida daria um livro.

Com passo sonolento descobriu que ia longe demais no consumo de embutidos. Bêbada de sono alcançava a cozinha para o exame. Quando abria a geladeira era uma consolação. Sempre acordando nas sextas-feiras após as vinte e duas horas para inspeção. Teria transformado sua existência num vício? Madalena viciada em salsicha! A salsicha não aparece no livro das infrações, portanto respirou aliviada. São aceitas e qualquer um pode ter quantas quiser em casa. Ninguém entraria porta adentro para evitar o colesterol dentro delas. Pelo menos por enquanto se sentia a salvo.

Desta vez jogava com a hipótese de permanecer entre a ruína e o alívio imediato das pressões. Como diamante corta diamante despertava para espiar a geladeira e reconhecer se haviam sido mastigadas pelo novo namorado. Olegário preferia comida fria. Andava enojada do hábito do companheiro. Resistiu em silêncio dois verões e foi o fim. Não pode mais se conter.

- Olegário você come comida fria!

Como acontecimento absolutamente novo os seus olhos foram de espanto. Não disse nada e mesmo assim o amor acabou numa fotografia dos dois perto da roda-gigante que não tiveram coragem de subir.

Apolinário partiu com mala e cuia para um lugar que ela nunca ficou sabendo. Nem sequer chorou. Assistiu à televisão devorando cachorro-quente com a enorme salsicha que lhe tirou da realidade amenizando o drama arrepiante da novela.

Ficara só entre a luz da geladeira e as explosões oníricas da gula. Ria consigo batendo na barriga como a dizer: ninguém fez samba disso!

Aqueles frios da ocasião marcavam o limite entre o novo amor e algum defeito irrecuperável. Sim, respirou tranqüilizada, pode faltar tudo em casa, menos a salsicha vital do abastecimento. Voltou para a cama certa do amor próprio.

A raiva veio depois quando descobriu que Apolinário tinha amante. Amante que lhe servia comida quente sempre na hora.