Sobre santidade, silêncio e libertação
"Quando estou no jardim, sei que estou andando no lugar que Deus ama. Deus ama a vida, o vento, o Sol, a terra, a água- as coisas estão no jardim. Mas as igrejas são lugares fechados, abafados. Bichos e plantas não se sentem felizes lá dentro" - Rubem Alves, "Na Morada das Palavras"
"Ai de vós fariseus, que gostais das primeiras cadeiras nas sinagogas e das saudações em praças públicas" - Lucas, 43
ATO I- Das virtudes de Santa Iolanda.
Iolanda era, sim, uma Santa Freira!
Pertencia a ordem das carmelitas descalças. Sentira um desejo de entregar seu ventre ao sagrado desde a mocidade. Pois como era estabanada de exagerada logo em um convento enclausurou-se.
Levantava- se às 5:00 da manhã todos os dias ao som do sino da igreja e pela dureza do seu voto de obediência.
Era responsável pela elaboração dos deliciosos quitutes do
convento. As freiras faziam isso para vender no centro da cidade e tentar arrecadar um pouco de dinheiro para o próprio sustento da congregação.
Vivera já dez anos em uma grande placidez espiritual dentro do claustro. Quando algum pecador do mundo lá fora lhe perguntava:
- Irmã, por que a senhora gosta de estar aqui pressa?
Ela com um sorriso de santa respondia
- Eu não estou pressa, sou livre! -Só tem liberdade quando não se está no pecado, pois, este sim aprisiona e escraviza!
Parecia a voz de extrema autoridade de um profeta do antigo testamento, sabe?
Iolanda era, sim, uma Santa Freira!
Iolanda também era extremamente dedicada a sua carreira religiosa. De seu pequeno tamanho de altura e do seu pouco peso mostrava virtudes que até os santos poderiam cometer o devaneio de pecar pela inveja.
Cantava belissimamente suas laudes e vésperas em latim. Sabia de cor a história dos grandes Santos e tinha uma devoção muito grande por São Miguel Arcanjo. Enxergava o céu com a sua proteção através da sua justa espada que eliminara do reino todos os incautos de Deus.
Que Santa, era, sim, a Freira Iolanda!
ATO II - Junho- A chegada do inverno.
Mas eis que veio um inimigo: o silencio áspero de Deus.
Tudo começara em um mês de junho quando duas folhas de uma velha árvore caíra sobre seu hábito.
Ao longe as montanhas que eram tão belas e verdes aos seus olhos, tornaram-se cinza e vazias de sentido. O jardim do claustro não lhe provocava mais aquele júbilo de devoção. Era uma espécie de desencantamento do sagrado.
Ela, pela primeira vez, sentiu um sentimento de úmido nada em sua alma.
Pobre, Santa, Iolanda!
Não ouvia mas a voz do seu crucificado. Durante as rezas em latim, entre o passar dos dedos pelo seu terço que no hábito ficava pendurado, nas passagens que lia da palavra de Deus sozinha em sua cela...
Nada! Parecia que seu Deus com ela, silenciara.
Foi, então, logo procurar a Madre superiora. Ela determinou a penitência, um bom longo jejum e o uso poderoso do cílicio. Obediente Iolanda obedeceu, sem delongas.
Longos jejuns fez- em demasia diga-se de passagem- Seu joelho em carne viva estava de tanto joelhar-se para a oração e penitência.
Fazia tudo, sim, por Cristo. Queria sentir-se de novo sua esposa. Queria uma nova a metanoia em sua vida
Mas o grande silêncio de Deus se impunha.
Nada!
Era como se fosse aquela passagem pelo deserto que o povo Hebreu estava passando. Pelo menos, assim ela se consolava.
Pelos longos jejuns, sua aparecia já esguia, tornou-se ainda mais fraca. Tinha febres, dores lancinantes e começara a perceber que talvez uma doença fatal iria atingi-la em pouco tempo. Com a piora do seu quadro clínico a Madre superiora chamou o único médico da região, o Dr. Magalhães
Após auspiciosa e minuciosa observação através da ciência médica eis o anúncio de um fatídico diagnóstico:
Dr Magalhães - Irmã Iolanda, lhe dou mais ou menos 3 meses de vida. A senhora tem um câncer que está no fígado e já encontra-se em processo de metástase. Sinto muito.
Iolanda dispensou a morfina. Queria sentir a dor de Cristo através do câncer. Mas por que nem nessas horas ela não ouvia a voz dele? Estava ali prostrada diante do sacrário capela e nada.
Nada!
As dores foram ficando mais intensas. Iolanda sabia que daquela noite não passaria. Pediu ao padre da paróquia ao lado que lhe desse o último corpo de Cristo e ouvisse sua confissão.
O padre, um antigo franciscano, sentou-se na cama com Iolanda colocou a estola roxa e lhe perguntou:
- Pode falar minha filha, conte-me seus pecados.
Padre,- disse Iolanda cansada pelas dores mas com um certo tom de indignidade- sempre segui o evangelho e obedeci à santa fé católica!
Busquei a virtude, a retidão, a obediência como forma de vida. Quis ser santa! Por isso me dediquei a única e verdadeira religião - mas hoje, o que eu encontro? Nada! Deus não fala mais comigo. Rezei tanto, cumpri todos os mandamentos, fiz todos os meus deveres e por que agora esse silêncio?- Estava, Iolanda revoltada e aflita ao mesmo tempo.
O velho padre fransiscano respondeu: minha filha, sei do teu coração. Ele é puro e mesmo agora na hora da sua morte vejo Deus em sua face.
Como assim, padre? Eu não sinto mais a presença de Deus!
Apenas um vazio, um terrível vazio!
Minha filha: você assim como Ester do antigo testamento viveu em um palácio. Um palácio do sagrado cercado de imagens cristocêntricas e marianas de extrema rigidez.
Mas esqueceu-se que a atualização da paixão de Cristo não se dá somente na solidão do claustro mas no encontro com os mais humildes que neles podemos ver Cristo novamente.
Esqueceu de entender que existe vida fora do convento e mesmo os pecadores e não crédulos estão em Cristo da sua maneira.
Esqueceu da bela natureza criada por Deus, do Sol, da Lua, das estrelas e fechou-se em si mesma em rezas que nem eu sei o que dizem pois já me convenci que latim é coisa de doido- tentou animar o padre a pobre e debilitada freira.
E o que posso fazer padre? Não posso morrer sem Deus! Estava desesperada.
- Minha filha, aquieta teu coração, tira essa máscara de santidade fingida e se entregue ao coração do Cristo dos pobres. Sinto no seu rosto a morte já de aproximando.
Iolanda deu de ombros o conselho daquele sacerdote franciscano. Lembrara-se de um cardeal famoso falando que esses frades são todos comunistas e isso não era coisa de gente de Deus. Mas, mesmo assim, nada disse.
O padre dera a absolvição; o corpo de Cristo na sua língua foi docemente colocado.
ATO III- Da libertação.
Naquela madrugada, fora do convento, ouviram- se dois tiros. A violência urbana estava chegando perto daquela ilha de paz celestial.
As freiras ficaram assustadas e foram espiar perto do muro.
Iolanda, também escutara os tiros - mas ouvia algo mais.
-Iolanda, aonde você vai, doida?- Você está morrendo! Disse uma de suas confrades
Deixe-me! Disse a freira com impaciência.
Mesmo sem autorização abriu o portão do convento e viu uma mãe urrando a dor pelo seu filho assassinado. Era como a imagem de Nossa Senhora quando desceram Cristo no calvário - a imagem da Virgem da Piedade.
E naquele grito de uma mãe desesperada Iolanda escutou novamente não mais a voz de Cristo mas o seu grito pungente, feroz e salvífico.
As irmãs loucas pela desobediência correram para o portão. E viram não apenas o corpo de um menino negro mortos à tiros mas também o de Iolanda já vencida pelo câncer. E no seu último semblante um ar de desespero.
Sua alma esquecera a simples verdade do evangelho: é na dor desse mundo, nas suas grandes injustiças, nos excluídos, no som da mãe que perde seu filho é que Deus pulsa seu maior desejo de ação redentora.
Ao fim de tudo, soprara um vento triste e gelado na rua do convento.
Pobre e Triste Santa Iolanda!
De hábito caída no chão ela fora uma santa dos conventos frios e não do meios fios; onde, só agora, morta junto ao menino, encontrara o verdadeiro Cristo que não se via no recanto das igrejas de estátuas mortas, do sepulcro dos fariseus, do claustro de um Deus morto.
Rio: 17-06-2018.
"Quando estou no jardim, sei que estou andando no lugar que Deus ama. Deus ama a vida, o vento, o Sol, a terra, a água- as coisas estão no jardim. Mas as igrejas são lugares fechados, abafados. Bichos e plantas não se sentem felizes lá dentro" - Rubem Alves, "Na Morada das Palavras"
"Ai de vós fariseus, que gostais das primeiras cadeiras nas sinagogas e das saudações em praças públicas" - Lucas, 43
ATO I- Das virtudes de Santa Iolanda.
Iolanda era, sim, uma Santa Freira!
Pertencia a ordem das carmelitas descalças. Sentira um desejo de entregar seu ventre ao sagrado desde a mocidade. Pois como era estabanada de exagerada logo em um convento enclausurou-se.
Levantava- se às 5:00 da manhã todos os dias ao som do sino da igreja e pela dureza do seu voto de obediência.
Era responsável pela elaboração dos deliciosos quitutes do
convento. As freiras faziam isso para vender no centro da cidade e tentar arrecadar um pouco de dinheiro para o próprio sustento da congregação.
Vivera já dez anos em uma grande placidez espiritual dentro do claustro. Quando algum pecador do mundo lá fora lhe perguntava:
- Irmã, por que a senhora gosta de estar aqui pressa?
Ela com um sorriso de santa respondia
- Eu não estou pressa, sou livre! -Só tem liberdade quando não se está no pecado, pois, este sim aprisiona e escraviza!
Parecia a voz de extrema autoridade de um profeta do antigo testamento, sabe?
Iolanda era, sim, uma Santa Freira!
Iolanda também era extremamente dedicada a sua carreira religiosa. De seu pequeno tamanho de altura e do seu pouco peso mostrava virtudes que até os santos poderiam cometer o devaneio de pecar pela inveja.
Cantava belissimamente suas laudes e vésperas em latim. Sabia de cor a história dos grandes Santos e tinha uma devoção muito grande por São Miguel Arcanjo. Enxergava o céu com a sua proteção através da sua justa espada que eliminara do reino todos os incautos de Deus.
Que Santa, era, sim, a Freira Iolanda!
ATO II - Junho- A chegada do inverno.
Mas eis que veio um inimigo: o silencio áspero de Deus.
Tudo começara em um mês de junho quando duas folhas de uma velha árvore caíra sobre seu hábito.
Ao longe as montanhas que eram tão belas e verdes aos seus olhos, tornaram-se cinza e vazias de sentido. O jardim do claustro não lhe provocava mais aquele júbilo de devoção. Era uma espécie de desencantamento do sagrado.
Ela, pela primeira vez, sentiu um sentimento de úmido nada em sua alma.
Pobre, Santa, Iolanda!
Não ouvia mas a voz do seu crucificado. Durante as rezas em latim, entre o passar dos dedos pelo seu terço que no hábito ficava pendurado, nas passagens que lia da palavra de Deus sozinha em sua cela...
Nada! Parecia que seu Deus com ela, silenciara.
Foi, então, logo procurar a Madre superiora. Ela determinou a penitência, um bom longo jejum e o uso poderoso do cílicio. Obediente Iolanda obedeceu, sem delongas.
Longos jejuns fez- em demasia diga-se de passagem- Seu joelho em carne viva estava de tanto joelhar-se para a oração e penitência.
Fazia tudo, sim, por Cristo. Queria sentir-se de novo sua esposa. Queria uma nova a metanoia em sua vida
Mas o grande silêncio de Deus se impunha.
Nada!
Era como se fosse aquela passagem pelo deserto que o povo Hebreu estava passando. Pelo menos, assim ela se consolava.
Pelos longos jejuns, sua aparecia já esguia, tornou-se ainda mais fraca. Tinha febres, dores lancinantes e começara a perceber que talvez uma doença fatal iria atingi-la em pouco tempo. Com a piora do seu quadro clínico a Madre superiora chamou o único médico da região, o Dr. Magalhães
Após auspiciosa e minuciosa observação através da ciência médica eis o anúncio de um fatídico diagnóstico:
Dr Magalhães - Irmã Iolanda, lhe dou mais ou menos 3 meses de vida. A senhora tem um câncer que está no fígado e já encontra-se em processo de metástase. Sinto muito.
Iolanda dispensou a morfina. Queria sentir a dor de Cristo através do câncer. Mas por que nem nessas horas ela não ouvia a voz dele? Estava ali prostrada diante do sacrário capela e nada.
Nada!
As dores foram ficando mais intensas. Iolanda sabia que daquela noite não passaria. Pediu ao padre da paróquia ao lado que lhe desse o último corpo de Cristo e ouvisse sua confissão.
O padre, um antigo franciscano, sentou-se na cama com Iolanda colocou a estola roxa e lhe perguntou:
- Pode falar minha filha, conte-me seus pecados.
Padre,- disse Iolanda cansada pelas dores mas com um certo tom de indignidade- sempre segui o evangelho e obedeci à santa fé católica!
Busquei a virtude, a retidão, a obediência como forma de vida. Quis ser santa! Por isso me dediquei a única e verdadeira religião - mas hoje, o que eu encontro? Nada! Deus não fala mais comigo. Rezei tanto, cumpri todos os mandamentos, fiz todos os meus deveres e por que agora esse silêncio?- Estava, Iolanda revoltada e aflita ao mesmo tempo.
O velho padre fransiscano respondeu: minha filha, sei do teu coração. Ele é puro e mesmo agora na hora da sua morte vejo Deus em sua face.
Como assim, padre? Eu não sinto mais a presença de Deus!
Apenas um vazio, um terrível vazio!
Minha filha: você assim como Ester do antigo testamento viveu em um palácio. Um palácio do sagrado cercado de imagens cristocêntricas e marianas de extrema rigidez.
Mas esqueceu-se que a atualização da paixão de Cristo não se dá somente na solidão do claustro mas no encontro com os mais humildes que neles podemos ver Cristo novamente.
Esqueceu de entender que existe vida fora do convento e mesmo os pecadores e não crédulos estão em Cristo da sua maneira.
Esqueceu da bela natureza criada por Deus, do Sol, da Lua, das estrelas e fechou-se em si mesma em rezas que nem eu sei o que dizem pois já me convenci que latim é coisa de doido- tentou animar o padre a pobre e debilitada freira.
E o que posso fazer padre? Não posso morrer sem Deus! Estava desesperada.
- Minha filha, aquieta teu coração, tira essa máscara de santidade fingida e se entregue ao coração do Cristo dos pobres. Sinto no seu rosto a morte já de aproximando.
Iolanda deu de ombros o conselho daquele sacerdote franciscano. Lembrara-se de um cardeal famoso falando que esses frades são todos comunistas e isso não era coisa de gente de Deus. Mas, mesmo assim, nada disse.
O padre dera a absolvição; o corpo de Cristo na sua língua foi docemente colocado.
ATO III- Da libertação.
Naquela madrugada, fora do convento, ouviram- se dois tiros. A violência urbana estava chegando perto daquela ilha de paz celestial.
As freiras ficaram assustadas e foram espiar perto do muro.
Iolanda, também escutara os tiros - mas ouvia algo mais.
-Iolanda, aonde você vai, doida?- Você está morrendo! Disse uma de suas confrades
Deixe-me! Disse a freira com impaciência.
Mesmo sem autorização abriu o portão do convento e viu uma mãe urrando a dor pelo seu filho assassinado. Era como a imagem de Nossa Senhora quando desceram Cristo no calvário - a imagem da Virgem da Piedade.
E naquele grito de uma mãe desesperada Iolanda escutou novamente não mais a voz de Cristo mas o seu grito pungente, feroz e salvífico.
As irmãs loucas pela desobediência correram para o portão. E viram não apenas o corpo de um menino negro mortos à tiros mas também o de Iolanda já vencida pelo câncer. E no seu último semblante um ar de desespero.
Sua alma esquecera a simples verdade do evangelho: é na dor desse mundo, nas suas grandes injustiças, nos excluídos, no som da mãe que perde seu filho é que Deus pulsa seu maior desejo de ação redentora.
Ao fim de tudo, soprara um vento triste e gelado na rua do convento.
Pobre e Triste Santa Iolanda!
De hábito caída no chão ela fora uma santa dos conventos frios e não do meios fios; onde, só agora, morta junto ao menino, encontrara o verdadeiro Cristo que não se via no recanto das igrejas de estátuas mortas, do sepulcro dos fariseus, do claustro de um Deus morto.
Rio: 17-06-2018.