A agressividade do anonimato

Há muito os nomes deixaram de ser importantes. Desde a invenção do nicknames nas antigas salas de bate-papo, quem nós somos passou a ser ofuscado pela persona que assumimos diante do mundo virtual. Buscamos no anonimato a possibilidade de explorar os limites que nós mesmos não temos coragem de assumir, sejam eles sexuais, políticos e ideológicos. O anonimato virtual acabou por criar um novo locus onde somos o que queríamos ser e nesse espaço não cabe a fraqueza ou a humildade. Tudo nele é determinação, pré-concepção etc. Compartilhamos, criamos, divulgamos conteúdos que se alinham à imagem que criamos de nós mesmos, achando, numa concepção fetichista, de que aquilo expressa a realidade dos fatos, ao mesmo tempo que somos bombardeados com notícias tendenciosamente agradáveis aos nossos olhos. Que dizer dos memes políticos, das fake news, da manipulação de imagens? Se até terraplanistas são bombardeados de provas infalíveis de que a terra é plana e que o mundo vive uma grande conspiração da NASA?

Mas o perigo disso tudo não está nas personas que assumimos, mas a possibilidade de outras formas de violência e de agressão contra aqueles que não estão na mesma bolha. O anonimato cria aquela parede de segurança e impunidade que nos permite destilar ódio gratuito contra os que discordam de nós. Pense em uma mulher muçulmana brasileira que se posiciona sobre a sua opção religiosa, sobre o porquê de ela aceitar o Islam e de defender aquilo que ela acredita em um vídeo publicado no YouTube. Desça e leia os comentários ao que ela falou. Lá você verá pessoas não criticando os argumentos dela, mas a pessoa dela, ofendendo com palavras, denegrindo o que ela acredita, dizendo que ela merece morrer... Veja o debate entre direita e esquerda; os casos de racismo, homofobia. Tudo isso denota a necessidade doentia de termos alguém a quem odiar para sermos o centro de nosso próprio mundo, mesmo que esse mundo não passe de uma casca de noz. Mas sabemos que agir assim no mundo real não é possível, por isso a internet é esse locus. Tanto é assim que as poucas pessoas que são punidas por crimes de injúria, racismo, na internet não tardam a dizer que aquilo era só uma brincadeira, só se expressaram errado era só isso, ou só aquilo, que elas mesmas não são aquilo, que é só perguntar a quem as conhece. Mas isso não é o fim, porque debaixo de notícias assim, aparecem muitas ameaças de morte, críticas - o chamado linchamento virtual, de pessoas que sabem que não serão levadas à sério, e usam desse anonimato para fazer o que bem quiserem.

Às vezes acho que o neo-fascismo nasce do anonimato. Que os nossos novos vilões não serão os conhecidos, mas os que se escondem baixo esse anonimato agressivo. O novo mal virá do soco invisível, mas público. O novo homem invisível não é mais aqueles que não vemos, mas o que não nos importamos em ver porque temos nosso próprio locus para administrar. Daqui a um tempo, dizer o nome verdadeiro, esse sim será um ato de coragem.