O PH do Epiphânio
Um dia, levaram-no para estudar em Belo Horizonte. Era o José Epiphânio Camillo dos Santos, mais simplesmente Zé. Fiquei sabendo agorinha, uns cinquenta ou mais anos depois. Antes tarde do que nunca, ou, como diz o embaixador Paulo Miranda: “it’s snow or neve”. Não senti falta dele, tínhamos irmãos e irmãs demais e, além disso, eu tinha muita coisa pra fazer: brincar, descansar e brincar até de descansar. Pois Epiphânio, com PH e tudo mais, foi exilado do Beco dos Canudos beirando os quinze anos de idade para estudar no Colégio Anchieta e morar na rua Guarani, que, pelo menos, rimava com Pitangui e com Tupi. Estávamos no meio duma brincadeira, só disse licença, volto já, e nunca voltou. Será que, pelo menos, ficou sabendo que mudaram o nome da rua? Não sei se lhe conto, pode ser traumático. Até hoje guarda a placa e o número da casa em azulejo português: Beco dos Canudos, 147.
Era um menino esguio, parece que já nasceu de óculos. Aos cinco anos já ia à escola, enquanto nós outros folgávamos a mais não poder. O Beco era o centro do mundo, tinha duas pontas, que serviam de Bojador para os moradores. Além dele, começava o mar desconhecido, chamado ora Morro da Paciência, ora Morro do São José, duas ladeiras perpendiculares de cada lado, onde pontificavam duas capelinhas. Nele brincavam até às dez da noite toda classe de meninos.
Havia dias que interditavam a rua para uma partida de futebol. Os dois arcos eram as pontas do Beco, de muro a muro. Era gol quando a bola rolava descontroladamente por uma das ladeiras que limitavam o mundo. Algumas bolas se perderam nas águas do Baiacu, córrego que passava no vale próximo e fazia encontrar as duas ladeiras na baixada. Já o menino do PH não devia jogar, porque já estudava, já lia muito, imagino, e futebol era coisa de malandro, segundo a análise abalizada e definitiva do Zé Vovô, meu avô e de um monte de outros netos. Mas eu não sabia disso e ainda era pequeno para ser titular de qualquer um dos times, ficava admirando Hugo, Rui, Arthurzinho... Aliás, seu primo Arthur Bernardes, o Arthurzinho com TH, que virou médico, foi o responsável por engatar minha carreira futebolística: me escalou no gol numa dessas peladas no Beco dos Canudos e não me crucificou pelos inúmeros gols que levei, coisa de psicólogo. Foi também o primeiro que usou o verbo “assentar” ali no Beco, o que causou frisson em todos os presentes no alpendre do meu pai. Todos os demais economizavam o “a” e o “s”, ou por sovinas ou não saberem falar direito ainda. Houve até quem dissesse que o errado era o Arthur. Outros dias, voltando às brincadeiras da rua, as meninas é que interditavam o Beco e construíam o castelo da Margarida bem em frente ao Chafariz, que já não está por ali, e da casa do Neném Relojoeiro, o que tinha mais filha menina mulher, como diziam.
Enquanto isso, Epiphânio já brandia o PH e os dois LL do Camillo, preparando-se para os controles migratórios nas inúmeras viagens que fez por Oropa, França e Bahia. Numa delas, em Rapallo, Itália, só obteve atenção, a cordialidade e a confiança de uma desconfiada “mamma”, quando apresentou seu PH e os dois LL. É que o nome dela tinha TH e os LL. Aí, a “mamma” amaciou, sorriu e entabulou uma conversação mais profunda, chegaram até a discutir com Deus, ela na certeza, quem sabe, de que por aquela ortografia não estava lidando com um educado jihadista.
Fui reencontrá-lo ainda em Belo Horizonte: ainda bem. Resgatamos o elo perdido quando do lançamento do meu livro Sina Cigana. Aproveitei e perguntei onde tinha estado esse tempo todo, pois deixou-nos sorrateiramente no meio de um “onde está o anel” ou na roda do castelo da Margarida, vou ali e volto, mas afinal de contas nós éramos pirralhos e ele já sabia ler desde mui tenra idade.
Agora, nosso papo é outro. Falamos de literatura e viagens. Oropa, França e Bahia é pouco. Temos más companhias: o grupo Tertúlia, escalado com Octavio, Olavo, Edmundo, Paulo, Francisco, ele e eu, a cujo nome acrescentei Quixotesca, derivado da Livraria Quixote, da rua Fernandes Tourinho, onde os encontrei pela primeira vez. Mas nem só dessas más influências vive o moço do PH e os LL, há ainda um tal Cláudio Pérsio, que gosta de desnudar Guimarães Rosa com Outra Mirada.
Mas o Beco dos Canudos continua na pauta. Estamos até pensando criar um grupo reivindicatório para recuperar o nome antigo do nosso Beco, com todo respeito ao Professor Chiquinho Teodoro, may God bless him. Mas, seja qual for a empreitada, ele, precavido, nunca sai sem o PH e os LL: pode ser que precise.