Um mundo que eu vi, 1

UM MUNDO QUE EU VI, 1
Miguel Carqueija


Eu fui criança (ah, pena esse “fui”) nos anos 50 e 60. De lá para cá os tempos mudaram, é óbvio, mas talvez a maior parte nem imagine o quanto. É preciso ter vivido e acompanhado todos esses anos, puxar pela memória. Em geral nós pensamos como um outro mundo, o mundo de séculos atrás, não décadas, englobadas dentro de uma vida humana. Mas as mudanças nas últimas décadas vêm sendo cada vez mais aceleradas.
Minha experiência pessoal quase se refere apenas a poucas regiões do Rio de Janeiro, mas já dão uma ideia da quantidade de mudanças. Por exemplo, as revistas, as bancas. No meu tempo de criança não haviam essas revistarias que são verdadeiras lojinhas, algumas ocupando salas em centros comerciais, outras em plena rua mas ocupando bastante espaço e vendendo não só publicações, mas biscoitos e outras mercadorias. Existiam porém os jornaleiros ambulantes, fenômeno que sumiu repentinamente nas ruas do Andaraí onde nós morávamos.
Havia um que empurrava suas revistas num carrinho de mão. Outro, mais idoso (desconfio que nenhum deles era brasileiro, mas já não há como saber), carregava suas revistas nas costas, em algum tipo de mochila. Passava gritando, e como sabia que eu lia o Pato Donald, ao passar em frente ao nosso sobrado gritava: “Olha o Patinho!”
Houve um dia em que choveu torrencialmente. Nesse dia ele não passou, e de resto, nunca mais. Fiquei sabendo que havia morrido, quem sabe em consequência de alguma pneumonia pega nessas longas andanças pelas ruas mesmo em tempo inclemente. A vida ás vezes é muito dura. Hoje acredito que esses jornaleiros ambulantes não deviam ter dinheiro para financiar uma banca, por isso tinham de circular.
As revistas também mudaram muito de lá para cá. Existiam as infantis e infanto-juvenis feitas por brasileiros, inclusive quadrinhos. Isso tudo sumiu com o rolo compressor estrangeiro. Tínhamos o Sesinho, a Vida Infantil, a Vida Juvenil, o Pinguinho, além do mais antigo “O Tico Tico”, quem se lembra? Existiam personagens nacionais de HQs, como o Barão de Rapapé, Reco-Reco, Bolão e Azeitona, Plácido e Muso, Cid Bengala, C.B., Pituca, Champanhota e tantos outros, que o vento levou impiedosamente. Alguns eram muito engraçados, como Lourolino e Remendado, improvável dupla de papagaio e jabuti que, ainda por cima, adotou um corvo criança, o Zulu.
Não há muita memória dessas coisas. O charme desses antigos quadrinhos nacionais não pode ser substituído pela chatice clicherizada da Turma da Mônica.

Rio de Janeiro, 13 de junho de 2018.

imagem pixabay