Assim ou ... nem tanto. 141
As Margaridas
A poltrona estava vazia e no lugar de D. Luísa vi, gigante, um corvo avantajado. Olhou-me com brilho escuro, abriu o bico córneo e crocitou. A seguir, iniciou um voo rasante pela salão, raspou a cantaria da janela aberta e ergueu-se no ar até ficar de escala reduzida, igual a todos os corvos que conheci. Pareceu-me sentir que aquela ave enorme era a D. Luísa, a que nunca quis entrar num avião com medo de morrer. Senti que, cansada de respirar com falta de ar e de coração descompassado, desistira de estar. Os óculos que lhe tornavam a curiosidade enorme estavam na poltrona acompanhados do terço de contas claras e de um caderno com números de telefone. As portas do salão fecharam-se e, do outro lado, a diretora da casa, o médico e as auxiliares aceleravam providências e papelada. O corpo de Luisa passou coberto numa maca transportada por bombeiros. No salão todos perguntavam com o olhar e os lúcidos já conheciam a resposta. Amanhã outra pessoa ocupará o cadeirão e dirão que D. Luisa está de novo no Hospital sem previsão para sair. A seguir esquecemo-nos e a rotina tomará conta do espaço. Um a um muitos foram chegando e desaparecendo. Nem todos velhos mas todos atormentados por incapacidades várias. Nós estamos aqui de passagem, dizes-me. Um destes dias o nosso filho chega de onde nem sei e leva-nos de volta à nossa casa. Claro que ninguém regou o jardim e que estão mortas as margaridas. Faremos tudo de novo se nenhum de nós se transformar em corvo entretanto.