Um tango no Brasil
O relógio marcara 22:00 hs., dei a última de uma centena de olhadas no espelho para ver como eu estava... gel nos cabelos, Lancaster na região da nuca, bigode devidamente aparado, a camisa de seda, o terno risca d`giz e, finalmente, chequei meus sapatos de pelica. Com tudo em cima, parti para o salão de dança, o Milonga bien Porteña, que fica no bairro Sion, na rua Grão Mogol. Antes de começar a subir as escadas que dão acesso ao salão, girei minha boca sob o comando do pescoço em direção à minha orelha esquerda e sussurrei “não queiras a paz, queiras a perfídia, não queiras o amor, queiras o furor, não sejas bom, sejas cruel..” "Sim, é isto", pensei e fui além “queiras um tango de bordel”. Já no meio das escadas, dei uma outra paradinha e, desta vez, girei meu pescoço para que a boca ficasse na direção da minha orelha direita e sussurrei novamente “sim, sim, não queiras a paz, queiras a dissidia não queiras amor, queiras o ardor, não sejas mel, mostres teu fel, não sejas bom, sejas febril” . "Sim, perfeito, é isto", pensei e emendei “queiras um tango no Brasil”. Ao entrar no salão, confesso que bateu em mim um certo desânimo, o ambiente estava confuso, incógnito, morto, menstruado... “que espeto!” exclamei por dentro, desprovido de voz de barítono. Algo me veio à mente que deveria voltar para casa, as almas que estavam presentes no salão estavam conturbadas, mais pareciam um cão chupando manga, ninguém sabia se chorava ou se morria...
... até que ELA chegou, e chegou pra arrasar, trazendo fogo, mucho fuego no corpo todo, muito todo, muito fogo, foi como acender uma fogueira portentosa em pleno salão. Claro que pensei algo do tipo “é comigo mesmo”. Assim que meus olhos penetraram mais naquela figura majestosa, senti tê-la conhecido, e mais que isso, que tivemos um longo caso de paixão, paixão que arrebenta até corda de aço... “mas isso aconteceu há uns 20 anos, no mínimo”, calculei um tanto apreensivo com a minha calculadora sentimental que mal se sustentava na minha mão com a batida descompassada do meu coração ardendo nas chamas do desejo, em estado de pura brasa, enfim. “Madalena, sim, Madalena”, é o nome dela, pensei convicto. Depois, aí é que o bicho pegou, a verdade veio como um raio na minha consciência: eu me comportara naqueles tempos como um verdadeiro cafajeste. Como se algo daquele rapazola inconsequente ainda permanecesse zanzando dentro de mim, mandei a dor de consciência plantar erva-cidreira no asfalto para acalmar os pneus dos carros que por ele trafegavam nervosamente e dei um baita foda-se para quem pariu todos aqueles 20 anos passados: eu era um rapazola de fato e de direito, ela evoluiu desbragadamente, embora sempre fosse um pedaço de mulher, ela se transformara em algo mais, bem mais, muito, muito mais, sem dúvida, e resolvi então pedi-la para dançar sem pestanejar e livre de qualquer arrependimento e remorso. Ela olhou-me com desdém, e respondeu-me com aquela convicção de quem me conhecia desde outros carnavais: Não! Some! Eu insisti, e ela então perdeu por completo as estribeiras e começou com o dedo em riste em minha direção a me chamar de ordinário, de cretino, peste, calhorda, biltre, cafajeste, mau-caráter, patife, pulha, tratante, salafrário, cachorro, vagabundo...
... sangue correu pelo salão...
E até hoje ninguém sabe se ela morreu ou se fui eu.