Sinuca de bico
Eu quis ser cortês, bom menino, camarada, sujeito fino, nada cretino... Mas, que droga!, ora bolas, o que rolou não se rola, eu engulo tantos sapos, por que mais carrapatos? É parada torta a vida de quem segue livre no infantil caminho de querer entender os meus chinelos, perscrutar meus sentimentos e livrar-me dos troços que me amolam com faca afiada, talvez fruto de uma tardia herança em recente mudança, para depois voltar a tempos imemoriáveis de modo memorável e que se fosse a ocasião oportuna poderia até inventar novos artifícios, soltar fogos de artifícios e comprar flores artificiais iguais as que haviam na casa da minha tia Hilda. Sei que é hora de abrir a janela do meu presente um pouco mais, olhar para o céu noturno um pouco mais, poetizar-me, esquecer de que foi-se o que era doce um pouco menos. Acontece que foi-se o que era doce, levados pelas impenetráveis mãos do destino e, por fim, saber que a porta onde moro não se abrirá e se alguém tocar a campainha direi em mau e baixo som interno que não estou. É o caso. Sigo o caso, esse é o caso que me caso com ele e dele não abro mão nem com as mãos abertas num figurativo pensar que manda lembranças para os antepassados, pede desculpa por algum deslize, espera por dias felizes ainda que morta está a felicidade e que sempre fica a piscar os olhos para o porvir que estão carecas de saber que Freitas é apenas um sobrenome, é inútil querer saber o que existe sobre o nome e há, na verdade, tantas coisas inúteis sobre um amontoado de festas e carnavais de mentira, coxas, muitas coxas, sobre coxas. seios cheios de seios, pernas pra todos os lados, como diria Drummond, o Carlos,: - pra que tantas pernas, meu Deus! Acontece que o desejo ninguém consegue frear, não tem trava, não tem breque, tudo desejos, meu Deus! Salomão, com sua mania de ser Salomão, falou em vaidades, não sei quem falou mais sobre outras coisas, há tanta gente a falar... Então, vamos falar. Sim, vamos falar que há um sonho de tesouro nos olhos do pirata, e, falando abertamente, foi o Einstein, o eterno relativo, quem disse que “quebrar o átomo é mais fácil que acabar com o preconceito”. O ser humano é assim mesmo, não tem jeito. Não gosto da palavra orgulho, acho-a feia, prepotente, prefiro gratidão, gratidão de ter nascido numa terra, num Estado, e viver numa cidade que tem sol o ano inteiro, e só de noitinha, lá pelo buraco da madrugada é que um friozinho dá as caras, e é aí que me enrolo em lãs de cobertor comprados em sessenta prestações nas Casas Pernambucanas e já nem me lembro mais que eu quis ser cortês, jeito de menino, bonzinho, nada cretino. Sou assim mesmo, fico apaixonado por toda mulher bonita que vejo passar, mas dura pouco o meu amor, o amor cessa no passar da beldade, acaba num segundo, assim que o avião dobra a esquina. Parece que só a poesia fica. Mas chega de Carlos, Einsteins e Salomões, os tempos são outros, o carnaval acabou, o átomo foi pro brejo, as pernas libidinosas foram para o espaço e meu cavalo alazão perdeu a vaidade, mas continua por aí a voar pelos quatrocentos continentes, pelos duzentos mares e só o meu salário não aumenta. Estou morto. Eu vivo morto. Vejo meu velório, meu enterro, as lágrimas de mentira da prima Vera, pisco os olhos e.... vejo é que estou mais vivo do que nunca, levanto-me da minha cama, ex-caixão, mando a prima Vera tirar férias, ir para Ipanema cantar “o barquinho vai, o barquinho vem”, que eu já perdi a bossa, tenho é mais Tião Carreiro e Dilermando Reis no sangue. Blues, prima Vera!, blues!... samba de breque, talvez! Jazz é pra quem pensa que entende de música, ainda que no improviso. Bolero, bolero bem no bolero. Papo musical... hã... Ouro Preto... Ouro Preto... patrimônio mundial... já morei por lá, e só ficou na lembrança que as moças do bairro Buraco Quente não conseguem se entender com os rapazes do bairro Pau Doce. Mas, deixe estar... o Brasil está por aí com sua peculiar arrogância paulista, com a sua soberba nordestina, a sua hipocrisia mineira, a sua decrepitude carioca... numa tremenda sinuca de bico digna de toda a indignidade humana.