Choque de identidade
– Vamos, rápido, anda, que moleza é essa?, acho que você não bate bem das bolas. Sujeito esquisito! Você não é homem, não? Caramba!, pensei que você fosse normal, enganei-me redondamente, você é quadrado, ultrapassado, é lerdo, repetitivo, não presta pra nada. E é você que tenho, e ter você significa que tenho que lhe aturar, carregar-lhe em meus ombros, ficar toda hora lhe dizendo que isso deve ou não deve ser feito; parece que quanto mais velho você fica, a burrice cresce. Vê se você se enxerga pelo menos uma vez na vida!, e não adianta vir para cima de mim com cara de pobre coitado, que não sou de ter dó de ninguém. O pior é que você não se não se enxerga, não se separa de mim, tem os mesmo olhos que os meus, fala pela minha boca, pensa pela minha cabeça, tem exatamente a mesma cara que a minha. Por que você não vai pra outro sítio, hein? Olha, cara, não vê que estou cansado de você, que já não suporto mais lhe ver a se queixar da sua gastrite, da sua diverticulite? Que culpa tenho eu de você estar mais magro que bacalhau em porta de venda? Quem mandou você não ter se cuidado? Desculpa de peidorreiro é barriga inchada, já dizia Jorge Luiz Borges e Padre Antonio Vieira. Pena que você não entende de nada disso, seu saber é de porta de botequim, e foi lá que você começou a estragar a sua vida. Agora, é tarde. Uma batida de limão aqui, outra ali, uma fritura a mais, outra além mais... Quando se é jovem o corpo aguenta, depois as coisas vão se acumulando até o dia em que aparecem os primeiros fios de cabelos brancos, os seus passos passam a não ter a mesma pegada de antes e então começam a aparecer as azias, a fraqueza vai lhe minando até chegar ao cérebro, e, aí, meu chapa, não tem choro nem vela, é aguentar quieto. Eu disse "quieto". E não tem essa de levantar a cabeça, porque nem cabeça você tem mais, tem é cerebelo, seu cérebro já era.
– Mas, olha!
– Que olha que nada! Quieto! Falou e fez muita bobagem, não é?, agora, aguenta. Você acha que as pessoas estão se lixando para o que você sente? Vá nessa, ninguém está nem aí, e, mais a mais, todo mundo tem problemas. Eu mesmo estou até o pescoço atolado de problemas, e o maior deles é ter que lhe aturar 24 horas por dia. Já pensou no peso que eu carrego? Já pensou na merda de vida que eu levo? É, cara, você é um tremendo estorvo em minha vida. Pensei em milhares de saídas, mas como me separar de você, se você não me deixa em paz, você não se desgruda de mim um segundo. Eu cheguei ao cúmulo de pensar em pintar seus cabelos de cor de asa de graúna para disfarçar, mas de que me adiantaria se você tem a sina de usar até os meus cabelos? Bizarro. Já pensou? Pensou nada, você não pensa, eu é que penso, eu sou o pirata, você não passa de papagaio. Não sei o que seria de você se você não tivesse a mim. Claro, você já teria morrido atropelado, estaria debaixo da terra, seria um prato e tanto para as minhocas e para os vermes, se bem que lhe vendo assim cada vez mais magro, dá pra perceber claramente que nem para as minhocas e para os vermes você presta mais, está puro osso. Agora, aguenta, porque eu já não estou aguentando mais. E a droga de tudo isso é que não há saída, porque eu sou você e você, eu... não há como escapar... sou prisioneiro de mim mesmo, dividido ao meio e por inteiro, e esse meio e esse inteiro é todo feito de merda, merda inteira, inteira merda... merda! Que merda!
Mas me faça um carinho, você aí, você mesma, é, você que está me lendo agora, eu sei que você me ama ainda que com todo esse desprezo que sente por mim. Você desprezA-ME.