Etiqueta
Dizem que as roupas funcionam como etiquetas. Elas te classificam e mostram ao mundo quem você é, sem você precisar dizer uma palavra. Minhas etiquetas sempre foram bem claras em dizer quem sou: a versão feminina do Seu Madruga. Mas, não vou negar, ando procurado em vitrines elementos que me diferenciem de pessoas com as quais não tenho o menor interesse em parecer ou ser comparada. Nunca me importei muito com pano, sempre estou com a mesma blusa sem estampa, a calça monocromática de lavagem clássica, e um sapato preto que leva todos os dias para Alphaville o barro de Osasco. Mas, ultimamente, têm me incomodado alguns elogios vindos de pessoas que parecem ter saído do esgoto para onde são levados os comentários dos portais de notícias.
Dia desses, uma moça elogiou o meu batom. Notei que, ao contrário de todos os outros dias, eu não estava usando o meu vermelho-sangue-de-empreendedor-meritocrata. Era um rosinha bem anêmico. Analisando o contexto, interpretei aquilo como uma dica, já que ela costuma julgar mulheres pelo comprimento da saia, pela identificação com pautas feministas, pela opção de não ter filhos, pela empatia em casos de aborto, e ladeira abaixo. O chorume ainda se orgulha em dizer que foi criada como uma princesa (quem dera fosse presa numa torre) e diz que o maior feito de sua vida foi se casar com um nerd espinhento jogador de LoL. Bateu uma agonia tão grande quando vi sair daquela boca rachada e pálida que meu batom estava bonito, que no dia seguinte eu apareci de batom preto. A imigrante do interior nem conseguia fixar o olhar em mim. Amém, Cher!
Há algumas semanas, eu estava com uma camisa de gola peter pan, e outra praga me perguntou onde eu a tinha comprado. Disse que achou linda, feminina e delicada. A praga em questão, nos feriados, costuma visitar uma fazenda no interior do Rio de Janeiro onde mulheres negras vestidas de escravas servem café e bolo de fubá aos visitantes. No tour guiado por uma autêntica herdeira de senhor de escravos, as pessoas pagam 35 reais para se sentirem dentro de uma fazenda de café. Tudo contextualizado com funcionários negros que passam o realismo da época. Os homens sem camisa, carregando sacas de café nas costas, e as mulheres vestidas de mucamas servindo as mesas. Ao ver os meus olhos atônitos e indignados, a praga apenas disse: “Mas são só roupas…”.
“Só roupas…” ficou ecoando na minha cabeça até criar uma espécie de portal, um buraco negro. Eu entrei. Eu me vi vestida com a minha camisa de gola peter pan engomada, os cabelos, agora castanhos, estavam presos em um coque chique, sem nenhum frizz. E eu estava sentada, de pernas cruzadas, atrás da bancada evangélica, assinando um projeto de lei a favor da cura gay com a minha caneta Mont Blanc. Que desespero! Não é possível que essa aberração saída da sala dos professores de Carrossel ou dos escombros de uma igreja recém desabada tenha qualquer gosto em comum comigo. Eu faço questão em recusar essa sina maldita.
Aqueles 50 tons de bege me dizendo que gostaram da minha camisa me causou uma mistura de desânimo e revolta. Cheguei em casa e coloquei a camisa na cama dos meus gatos, hoje eles destroçam a gola peter pan. No dia seguinte, passei numa loja descolada onde blogueirinhas de merda fazem comprinhas. Forever 21 o nome. Passei pelas araras e vi várias peças com estampa de unicórnios voadores, unicórnios fumando maconha, unicórnios feministas, unicórnios veganos feministas voadores fumandores de maconha, até que encontrei um holofote que quase reverteu a minha cirurgia refrativa. Peguei uma jaqueta roxa holográfica de glitter e deixei no caixa nada menos do que a primeira parcela do meu décimo terceiro.
Estava tudo pronto para eu refutar qualquer percepção torta que aquele engodo pudesse ter de mim. Coloquei a jaqueta e saí para brilhar. Torci para que meu brilho ofuscasse e combatesse como um hadouken aquela áurea de conservadorismo bege que pudesse ser lançada a mim. Eu estava pronta. Até que, antes de atravessar o semáforo, uma moça ruiva, tatuada, cheia de piercings, com a camisa do The Clash me parou. Ela olhou para a minha jaqueta e disse: “Moça, sua jaqueta…”, eu me enchi de esperança, porque alguém que usa a camisa do The Clash pode se identificar à vontade, com certeza é uma pessoa do bem, e não de bem. Veja bem. Eu abri um sorriso tímido, quando, para minha infelicidade, ela completou: “Você esqueceu de tirar a etiqueta”.
E, como todos os dias, contrariada e envergonhada, eu arranquei a etiqueta antes de me apresentar para aquele covil de comentaristas do G1. Só que, dessa vez, literalmente.