Bigatos

Estou condenado a perder algum tempo, coisa que me desgosta profundamente, enquanto alguém que espero, também desperdiça parte do seu na antessala de um desses profissionais de saúde. Uma goiabeira retorcida que teve a péssima sorte de nascer neste centro urbano me chama a atenção para os frutos temporãos que insiste em produzir. Enferrujados, fanados de um lado, atacados de larvas frutívoras. No chão de lajotas alguns já apodrecidos, cujo cheiro, somado ao que vem do ribeirão próximo, faz o ambiente ominoso, não obstante outros sentidos se comprazam com as demais circunstâncias, como os olhos que se recreiam na exuberância da paisagem da serra que resiste sobranceira ao avanço da cidade, os ouvidos com os gorjeios e trinados num constante ascendente na medida em que a tarde declina.

Enquanto reflito sobre a incansável insistência da natureza em refazer o que o homem destrói, distingo, por entre os muitos ruídos da tarde a batida abafada que passa a se repetir em intervalos regulares e aumentando ligeiramente de intensidade como o tropel de algo que se aproxima. Pelo leve arrastar de passos, que também já se faz audível, a acompanhar o compasso lento daquele primeiro ruído intermitente, adivinho que se aproxima alguém num caminhar trôpego, arrimado numa bengala. Olho instintivamente para trás e vislumbro uma figura encarquilhada. Pede licença e senta-se ao meu lado no banco de cimento. É um homem já bem marcado pela idade, talvez próximo dos noventa, de baixa estatura e aparentemente muito bem cuidado, barba feita, roupa limpa e bem ajustada ao corpo.

O velho, numa ação lenta e metódica, tira o chapéu e coloca-o juntamente com a bengala, ao lado no banco. O volume que trazia debaixo do braço coloca sobre as pernas. Encadernação de luxo com titulo em letras douradas – Colunas do caráter, S. Júlio Scwantes – não posso deixar de observar, donde já presumo as crenças do recém chegado.

Não começa falando do tempo, nem toca na questão da fé, nem fala de si mesmo, nem quer saber de minha vida. Vê-se que tem boa formação e apesar da voz fraca comunica-se bem. Procuro demonstrar interesse por sua palestra. Ele aborda temas da atualidade e termina por chegar à paralização dos caminhoneiros e seu impacto. Sorri balançado a cabeça ao lembrar o desespero das pessoas por conseguir comprar combustível. “O homem sempre teve facilidade em tornar a liberdade uma escravidão”. Fala, como é próprio dos sábios, por aforismos.

“Na década de 1970, o que o homem consumia de recursos naturais, o que a Terra era capaz de fornecer. Trinta anos mais tarde, em 2007, seria necessário que o planeta tivesse mais cinquenta por cento de sua capacidade para repor o que o homem consumia, ou seja: seria preciso mais meio planeta para manter o padrão de consumo. Imagine que em 2030 seremos oito bilhões de habitantes”. Seus olhos cansados voltaram-se para a pobre goiabeira. “O homem acabará como os bigatos daquelas goiabas ali no chão”.

Olhei de novo para as goiabas. Lembrei-me imediatamente da obra do Ziraldo, “Cada um mora onde pode”. O velho sábio quis explicar a sua metáfora: “o bigato, esse bichinho das frutas, são larvas de uma mosquinha amarela e com desenhos nas asas, Ela coloca de oito a dez ovos em cada uma. Como vive 30 dias, chega a botar mais de 300. Aí eles comem o seu “planeta-goiaba” e crescem por duas semanas. A fruta apodrece, cai da árvore. Então as larvas saem da fruta e entram na terra, ficam lá por mais duas semanas e depois viram moscas e estão prontas para voar e começar tudo de novo.”

Ele dá um sorriso enigmático e conclui: “só que para aquelas ali, que caíram no cimento, não há saída. Como não haverá para o homem quando esgotar o seu planeta”

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 08/06/2018
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