SOBRE FEITIÇOS E FEITICEIROS

(a Zeferino Paulo de Freitas Fagundes, mestre de humanidades, onde quer que esteja)

Aproveitemos para refletir sobre a figura do Mestre e o exercício da crítica literária. Afinal, é sempre ele o que abre o caminho, aquele que chama a atenção para tal ou qual fato plausível de reconhecimento. É o provocador que vai ao âmago do que temos como verdades.

Gosto muito quando tenho alguém com quem discutir poesia. De prosa pouco, quase nada entendo, mas, sobre poesia, “dá pro gasto”, como dizem os interioranos. Prezo ainda mais quando vejo que a provocação crítica começa a produzir seus efeitos em mim e no criticado.

Para vir a entender um pouco da poesia de Carlos Nejar, poeta gaúcho ora residente no Espírito Santo, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1987, levei cerca de dez anos. Por fim, depois de tanta insistência de leitura, penetrei no seu complexo universo poético.

A crítica literária – que muito raramente vem a ser recebida com agrado – é um gesto de amor à arte, à vida e de respeito à figura de seu autor.

O exercício dialético, a antítese ao que se escreveu, instiga sempre à reflexão. E só esta pode melhorar o que escrevemos. Aprendi isto errando, imaginando que o que escrevia em 1978/79 era bom e que era definitivo.

Hoje, passados quase trinta anos, observo a minha eterna musa poética (e possessiva amante!) menos derramada, mais natural, mais compreensível. Mas a síntese que contém o mistério da Poesia me fustiga mais do que nunca. Tudo teve início porque, felizmente, tive um guru em Poesia que me fez refletir e amadurecer durante cerca de seis anos, de 1977 a 1983. E ainda hoje ele me persegue com o seu ensinamento pleno de sabedoria e de beleza técnica.

O idealismo, a ânsia de liberdade e a tentativa de exercitar a democracia em tempos de ditadura, traduzido na política partidária, roubaram-me da Poesia. Filiei-me ao partido do “contra”, e passei à militância na política oposicionista.

Neste ínterim, em 1989, com apenas 57 anos, ele passou para a outra margem da vida. Soube depois dos atos fúnebres, porque sempre dizia que “não me queria incomodar enquanto estivesse nas funções de deputado constituinte”. Foi-se um pedaço de minha sombra, de meu estofo vegetativo. Só fui me aperceber da imensa perda cerca de dez anos depois.

Agora, nesta quadra da vida, em que estou pronto para conviver com o criticismo literário, que já rolei mundo e preciso aprender em profundidade, não tenho mais, à disposição, o pólo dialético original, o infalível questionador.

Ao emitir para os meus botões o que penso ou entendi sobre determinada abordagem poética, parece que estou a vê-lo ao meu lado, tomando o seu inesgotável vinho cabernet, fazendo caretas, fumando o seu indefectível e fedorento charuto.

Ainda ouço o seu verso cantado: a cantilena da contagem rítmica, as eventuais aliterações cacofônicas e a ironia do brinde rolando em voz alta. E a lição de Walmir Ayala, repetida por ele aos meus ouvidos, permanentemente:

— Para saber se o ritmo está certo, é preciso ler o poema mais de cinqüenta vezes em voz alta! E desejar platéia!

Nos livros, os rabiscos de análise literária apostos à margem do verso ou da prosa de terceiro, riscando o que não bate bem ao ouvido ou ressaltando os lapsos gramaticais ou vernáculos, maculando a virgindade dos “respiros” de página, têm a mesma formatação do mestre. Inscrever os lembretes, por vezes sem nenhum cuidado ou critério técnico, somente com base no empirismo da emoção e o desejo de beber o estético com o traço forte da originalidade do texto e a personalidade do autor sobre o tema.

Sempre recomendo aos meus, em casa, que os livros grifados fiquem sempre por perto, quietos na estante, à mão para a pesquisa. Nada de empréstimos. Nem depois da morte. Naquela data, queimem-se os alfarrábios críticos. Espólio de livros? Só os não anotados. Faça-se a grande fogueira da passagem para a outra margem. Tarefa não muito difícil para a viúva. Sobrará algum lugar na casa, além do gordo espaço na cama.

É preciso ter cuidado na preservação da memória. O que escrevemos é sempre pobre em relação ao dito e o que se quis dizer verdadeiramente. Peço perdão, por antecipação de alguns anos, porque não sei a data em que deixarei de garatujar a crítica literária.

O autor de poema que ler as anotações, jamais perdoará o analista crítico se não concordar com elas.

Se a vida der tempo, ainda se pode prosear, tomar um vinho, declamar um poema, baforar um charuto, fumar o cachimbo da paz. Talvez o criticado entenda o que de bom se quis fazer.

E profundas lições de sabedoria sobre a arte de viver, de amar o coletivo, tomam forma e têm um nome na memória. Zeferino Fagundes, amigo, professor de Direito, emérito poeta do sul-surrealismo, como se autodenominava:

— Que o Altíssimo o tenha em Sua companhia! É o fundo desejo em profissão de fé.

E parece que vejo a poesia em forma de nuvens, ninho do poema recém-nascido, na leveza peculiar que o Mestre sempre apregoava para signos e palavras.

Tudo isto relembra os conselhos da jovem mãe, lá por 1960, quando, passando roupa e escutando a novela radiofônica do início da tarde, murmurava, entre dentes, com certa ironia:

— Acerca-te de uma boa árvore e boa sombra haverás de ter!

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre e Prosa e a Poesia, 2006.

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