O meu amigo
Estava a fim de fazer nada, mas eu tinha parentes afins. Esse lance de consanguinidade, na maioria das vezes, não presta pra nada. Melhor seria ter tido eu a sorte de ter algum parentesco com as ondas do mar para poder tragar tudo que pintasse pela frente, sem estar nem aí para saber algo sobre minha prima Gertrudes, se ela faz chapinha, menstrua verde, pula carnaval de salto alto pelas ladeiras de Salvador, se já foi para Alemanha aprender a falar português com sotaque de mineiro. A vida é assim e assado, cabra macho não chora, bom cabrito não berra, mas se sensibiliza como uma pedra ao deparar-se com notícias do tipo "célebres celebridades que surfam sob a ponte Rio-Niterói vão ao Programa do Faustão fazer A Dança dos Famosos" e "Ana Maria Braga vai dar dicas de bons modos durante as refeições aos pobres e famintos do Brasil durante a ceia da quarta-feira de cinzas". Talvez eu vá para o Rio de Janeiro no meu aviãozinho movido a pensamento de araque, mas não saio daquele miolo quadrado que vai de Copacabana até o Leme, pois sair fora dessa orla é fria, e é lá que o Rio é lindo, é menino que causa arrepio e tesão flutuante no Meloso, o Caetano... vá ele até o Realengo para dizer que não corro perigo fora dessa área de conforto. Pois é, hoje eu não fui na Loja do meu amigo. O meu amigo vende velas, imagens de santo, artigos religiosos, e diz que é parente do Barão de Coromandel. Coitado do meu amigo, anda mal das pernas e sempre de bem com o orgulho, sua loja fica mais vazia que tudo em nada e, no entanto, ele vive com o peito estufado, deve ser por isso que dizem carroça quanto mais vazia ela está mais barulho ela faz. Não dá mesmo pra entender o meu amigo, ele trabalha com artigos religiosos, mas vive a falar de política, está sempre antenado no programa do Datena - sensacionalismo é com ele mesmo! - e, fora isso, diz repetidas vezes que, quando jovem, fora da TFP, que esse mundo está perdido e que toda mulher que usa batom vermelho quente é uma péssima esposa, tem mais vocação é para ser boa amante. Meu amigo gosta de pular a cerca, mas vá alguém maldizer dos seus ares de homem sério... toma na cara. Sei lá. Desconfio. Ele é fã de Carlos Lacerda, mas diz que Tancredo Neves foi um grande homem. Poxa, ele não comenta nada de cunho religioso! Nada! E vive disso... Verdade é que eu nunca senti algo nele em que a voz da compaixão o tocasse, mas não consigo ver lógica e não me atrevo a perguntar-lhe por que ele entrou para esse ramo. Meu amigo tem canga no coração, caatinga na cachola e breu na alma. Mas, no fundo e pelo andar da carruagem, acho que o meu amigo é o único parente que me restou, com ele é que fico horas e horas, fazemos palavras cruzadas juntos, jogamos dama, lemos Super Notícia... tá sendo assim a minha vida, o mais sensato é concordar com tudo o que ele diz. Eu é que não vou me meter a falar de chão de estrelas e de flores de maio com ele, pois meu amigo diz que poesia é coisa de maricas. Não quero que coisa alguma possa atrapalhar a nossa amizade. A única vez e, espero ardentemente que seja a última, que me dei mal com meu amigo foi quando mencionei, e, pior, em tom de brincadeira, que ele se perfumava assim que senti um cheiro de uma fragrância adocicada vinda dos lados dele. O sangue subiu-lhe às narinas, esparramou pelas bochechas, seus olhos faiscaram, toda a raiva acabou por desembocar na sua boca entupida de coroas, pontes fixas e, por fim, em um falar ríspido, raivoso e canino em que ele disse "é uma questão de higiene, seu merda!". "Tremi", confesso. É!!! O jeito é ter olhos, boca, mente e modos de estátua, pois não é fácil, afinal, encontrar um amigo hoje em dia. Sim, um amigo que gosta de cheirar rapé, que tenha um bigodinho esperto, uma Brasília branca caindo aos pedaços e em que cujo sangue corre o sangue do Barão de Coromandel.