O cãozinho
De repente um barulho do cão invadiu meus ouvidos. Corri para a janela. Era o carro de som do Clube Music Best anunciando: “venham... venham todos... neste sábado às 20:00 horas... assistir ao show de Elvis Brow... in concert... é samba puro... minha gente, my brother... e no domingo... atenção mulherada!... às 19:00 horas... venham assistir ao sensacional show da dupla sertaneja mais autêntica do Brasil... John & Lennon... é pura música de raiz, minha gente, my brhother!... ingressos à venda na Livraria Evangélica El Shaday e no Supermercado Popular D`France”. "Descaracterizaram o meu país", pensei.
A seguir, um sujeito usando um par de óculos que parecia ocupar-lhe quase que todo o rosto, entrou na Farmácia Mãe Lu, encostou-se no balcão e perguntou ao Fiúza, que estava atrás do balcão, onde ficava a Gráfica Dona Beija. Fiúza foi rápido na explicação “ah, fica na Rua D`Conquista! É só subir direto, entrar na Rua dos Desejos, andar dois quarteirões e virar à esquerda, que você vai avistar um edifício todo rosa, bem no início da Rua Fogo da Paixão: é o Edifício D`Amore, a Gráfica Dona Beija fica lá”. O cara levantou um pouco os óculos com a ajuda do dedo indicador direito a fim de tirar uma remela que havia ficado no olho esquerdo, disse obrigado e apressou o passo.
Uma mulher de nariz finíssimo, sorriso oval e coxas poderosíssimas atravessou a Rua Formosa, entrou num Ford KA, acomodou as nádegas no banco, dando antes uma balançadinha para os lados, checou a fisionomia no retrovisor de dentro, passou um batom de cor quente, esfregou os lábios entre si, e, finalmente, deu partida no carro e se mandou em direção ao Bairro Lindéia.
Passando na calçada ao lado, notei, pela janela do quarto, a presença de um cãozinho preto descendo a rua, achei que conhecia aquele cão de algum lugar... sim, só podia ser ele: balançava o corpo devagar, ora para a direita, ora para a esquerda, a cabeça acompanhava o movimento lento do corpo, farejava as coisas com uma certa sofreguidão, subitamente parava, deixava-se deitar, observava os carros passando, duas mulheres conversando, a meninada brincando de skate, uma cachorrinha de madame de nariz empinado que acabara de cruzar o seu caminho, sem antes ver-se advertido com um brusco “sai, tiu!”.
Eu logo pensei: a indiferença é sina, o padrão greco-romano de beleza é que dá as cartas. Mas continuei observando aquele cãozinho indo, sem uma única pinta clara sequer, magrinho, esquelético, sozinho, solto pelas ruas, abandonado. "Pena!", pensei indignado... os seus olhos eram mansos, parecia perdoar os chutes que levava nas portas das padarias e dos açougues, tinha as orelhas docemente recurvadas, andava educadamente, respirava bondade, o rabinho estava constantemente dando tchauzinho de neném, não latia, não mordia, parecia ter boa índole, inspirava confiança e seria, sem dúvida alguma, uma boa companhia para qualquer pessoa.... Mas, nem com tudo isso, ninguém o queria, pois a indiferença dos outros era a sua sina. "É a força do nosso pobre, oco e mesquinho ser interior que vive sempre no exterior, no lado mais estrangeiro e abestalhado d'agente mesmo”, pensei, sentindo-me totalmente impotente.
Afastei-me um pouco da minha janela, sentei-me na cama, já cansado, esgotado e descrente de tudo... e, por mim, jogava tudo isso fora: o carro de som, o Elvis Brow, Fiúza, a Gráfica Dona Beija, o Ford KA, a madame e, se duvidar, jogava até essa janela fora comigo dentro e tudo... mas o cãozinho não, ele, ele não.