Cortejo sepulcral
Jornada vespertina, destino docente. O motorista atrasado compensa no pé. Fé em Deus e pé na estrada, sem inversões tribalistas; a proteção divina deve ser acionada. E pela estrada afora não vamos sozinhos. Difícil é levar doces para a vovozinha que já está diabética e toma sopa porque a dentadura já não permite mais a mastigação. De uma terra solina para outra soalheira. Motorista e passageiro, diálogo “sócio-político-econômico-entretenimental”. Mas logo após os primeiros quilômetros, pista interditada, obra: sepultamento!
Pela primeira vez, o cortejo sepulcral definitivamente para todo o movimento automobilístico. Foi preciso parar o carro no acostamento para deixar o féretro passar, acompanhado logicamente pelos entes queridos. Uma visão fúnebre, comovente, estranha, reflexiva e divertida até. À frente, o esquife não muito paramentado, simples com uma coroa de flores por cima. Estava em uma espécie de carrinho próprio, menos mal, assim poupou os vivos do peso, bastava empurrar. Ao lado do ataúde, pessoas adultas chorosas, outras apenas cabisbaixas, com uma blusa que trazia o retrato do falecido. Mais ao fundo, vinham as crianças, seguidas de curiosos que não paravam de conversar.
A novidade, ou talvez não, foi a pequena banda de música que trazia em seu repertório canções fúnebres. É claro que Chopin foi tema obrigatório. Contudo, o mais curioso foi o vendedor de picolé que neste dia lucrou bastante. O rapaz trabalhava intensamente para lá e para cá, servindo não só os que estavam na comitiva, mas também os motoristas que foram obrigados a parar por causa do acontecimento. E era chocolate, frutas, coco, cobertura; de quebra, oferecia água mineral.
Os policiais que coordenavam o trânsito não quiseram abrir exceções, não abriram nada, só fechavam, e todos os motoristas tiveram que esperar, tanto quem ia, quanto quem vinha. O séquito ocupou toda a rodovia, todas as mãos e pés. Solitários ocultos aos familiares.
Apesar da demora, da espera, do comércio proveitoso da desgraça alheia, a atenção dada ao funeral foi singular. É preciso ressaltar que isso ocorreu em uma pequena cidade, longe das conturbações prediais dos grandes centros. Nesses lugares, ainda existe o respeito pelos que estão partindo desta vida, desta lida. Ainda se tiram os chapéus, e o preto inconsciente faz parte da indumentária, ainda que ilustrada com uma fotografia recordativa. Ricos e pobres, brancos e negros, todos são dignos de pararem o trânsito.
Mas não sou desta cidade, pertenço a outros ares, mais poluídos em tudo. A minha morte não parará o trânsito, talvez nem pare expedientes de amigos que, por força do trabalho, talvez nem encontrem tempo para dizer um adeus, ainda que eu não o ouça. Mas se pudesse, queria ter, pelo menos, a bandinha tocando uma marcha fúnebre. E o cara do picolé? Ah, deixe-o trabalhar, com aquele calor todo, até o defunto mereceria um refresco.
In: Ler-se(r), 2016, p. 99.