Coisas de uma noite de chuva

Era quarta e fazia pouco que eu havia chegado em casa. Eu tinha algumas coisas a fazer, contudo optei por relaxar. Bem fiz eu! Troquei os parafusos dos truckies do skate enquanto as outras pessoas que moram comigo se arrumavam para sair. Eu, sem preocupação alguma, cantarolava. Terminados os reparos e sozinho, fiquei batendo pernas pela casa a falar meus pensamentos e planos.

Como já premeditada pela tarde, a chuva começou a cair. Veio sem ventos, mas trouxe consigo relâmpagos e trovões como poucas vezes eu vira. Eu jantava nesse momento e, com calma, continuei. Entre relâmpagos, trovões e pés d’água eu dava uma garfada e outra. Ao término, arrumei tudo e continuei a falar a sós meus interditos devaneios, e cantava, mesmo sem nada ouvir.

Foi então que me veio uma lembrança de meus avôs e alguns tios dizendo que devemos fazer o máximo de silêncio possível, devemos respeitar a chuva. Eu nunca fui de acreditar muito nisso, embora tenha crescido seguindo o conselho, mas escolhi não pagar para ver. Sentei-me na sala de forma que conseguia ver a rua pela porta. Com toda a força da chuva que caía o bairro ficou sem abastecimento de energia. Sentado estava, sentado continuei. Parecia que Deus me privilegiava com aquele apagão: com o total escuro, restava apenas a estética das sombras e meu rosto clareando a cada relâmpago. Os carros que passavam na rua eram como disparos de luz. Isso sem falar na surpreendente sensação de ouvir as infinitas gotas se quebrarem ao chão.

Eu me deleitava com tudo isso em meio a pensamentos que reservava apenas para mim naquele momento. Parece afinal que dar às tempestades o silêncio que lhes cabe é silenciar a si mesmo para si. É como se a chuva servisse para que retomássemos os pensamentos a nós, onde e para quem realmente é necessário.

De repente houve um clarão lá fora e um estalo aqui dentro como o som apenas do impacto de um prato sem todo o tilintar dos cacos ao chão. Em mim, um raio. Depois um trovão lá fora. E então, silêncio, como se Deus a tudo que tem vida fizesse calar apenas para a chuva dar seu recado. Naquele momento era como se eu não mais pensasse, mas ainda existisse, massa inerte, copo vazio; algo gritava “vocês se bastam tanto que nem sabem onde estão as luzes da cidade!” Verdade, consentia eu.

Aos poucos, tempos depois, como se o céu não mais caísse, restou apenas a fraca chuva no telhado e o breu de mais nenhum relâmpago. Agora era a chuva quem se deleitava com minha infinitamente finita existência, meu fim no mundo, não mais eu com aquele fim do mundo que caía na chuva.

Crônicas de um Ignorante
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 02/06/2018
Reeditado em 13/01/2019
Código do texto: T6353291
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.