O inexato(!!)

Ia por ali ou aqui, andava devagar vagarento, sem culpa e sem pressa. Não havia preocupação com as horas, os atos, os afazeres ou o que quer que as pessoas têm em seu dia a dia. Vez ou outra parava, admirava ambos os lados da rua como se fitasse um não sei quê invisível aos outros. E retomava o caminho, novamente devagar vagaroso.

Pé frente pé assobiava uma canção da sua época ou solfejava canção de época alguma, como se as lembranças lhe faltassem, mas o tempo não fugisse. Quando percebia a “viagem” (como os tais atuais jovens dizem) em que se metera, balbuciava algo que jamais outro entenderia e ria do acontecido e de si com risos frouxos. Numa ou n’outra rua atravessava do sol para a sombra, de alguém para si; quando então era o período de a terra falar com os humanos, só andava sob árvores. “Sempre tem uma voz que podemos ouvir!” repetia direto, como quem chama atenção de si mesmo.

Alguns velhos da rua e da praça dizem que sempre foi assim, diferente, sutil e por vezes peculiar, desde pequeno. Trazia consigo enorme simpatia que parecia ou ter vindo de outra terra ou ter espírito de cachorro. Eu sei lá, acho que era só alguém que estava disposto a não simplesmente passar pela vida. Com muita calma, ele ensinava que mascar os fios do alpiste e olhar a rua fazem parte do ritual celeste de devanear, vislumbrar ou lembrar. Pouco fez como tanto faz das (re)afirmações que os humanos fazem de si para si, afinal, para quem acredita em Deus, viemos do barro e para quem não acredita, viemos da explosão. Acho que esse era o “peculiar” de que os velhos falavam.

Lembro-me também de seu modo de se relacionar com as crianças. Era de fato um embriagado de juventude. Olha, ele havia aprendido a sempre se redescobrir, porque compartilhava da mesma alegria da descoberta do umbigo, o retorno de uma série ou do terceiro ou quarto beijo, porque o primeiro e o segundo, cá pra nós, são um desastre! Eram muitos os mundos que carregava. Acho que só isso explica seu ser e seu ato de ser.

Suas conversas comigo eram sempre recheadas de aviões, ciências, futuros e passados. Falava de um quê que jamais, ou como o próprio dizia, nunca jamais saberei e que permeia, enche, preenche de sentido o ato da vida. Quantos anos foram pelos seus olhos? Não faço ideia, mas me recordo dele falar que a vida não existe. E quantos anos foram por seus olhos?... Sem dicotomias, sem polissemias, com perdas, sem culpa e sem pressa...

Crônicas de um Ignorante
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 01/06/2018
Reeditado em 13/01/2019
Código do texto: T6352690
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