O lugar-comum
Estivemos em greve. Os caminhoneiros e, por consequência, a sociedade, estiveram em greve, pois sem eles a sociedade para. Que novidade! A sensação que tenho é que disse algo muito caro a Bias, personagem da Antiguidade que aparece em uma das crônicas de Mário Quintana, na qual o poeta faz uma crítica ao lugar-comum, que vamos alimentando pela vida afora e vai nos dando combustível (lugar-comum apropriado, não?) para a comunicação fácil, pouco aprofundada. Segundo Bias, a vida é um fardo! Segundo Bias e, diríamos, segundo o universo...
Aproveitei a greve e fui andar. Encontrei o Renato Henrique Dias, jornalista e intelectual dialético. Paramos, não falamos de greve, mas nos lembramos dos tempos de universidade, em que o Renato respondia tão diferente do que fora ensinado, mas com tanta argúcia, que o resultado costumava ser um dez, atribuído por um mestre que lia as provas sem se apegar a um gabarito de respostas. Não fosse a greve, e apenas nos cumprimentaríamos e não relembraríamos esse saboroso episódio. Viva a greve!
Também desaposentei um par de tênis e fiz uma caminhada de quatro quilômetros pelo Poço d’Anta, resquício de Mata Atlântica, aqui na minha Juiz de Fora. Fui conduzido por um sobrinho naquela trilha onde só respirávamos o ar puro e ouvíamos o canto da natureza. Viva a greve!
Com certa imprevidência, saí a gastar um pouco do álcool que havia no tanque. Vi as ruas quase vazias. Motorista dos mais lentos, habituei-me a buzinas intolerantes convocando-me à velocidade. Na greve andei pelas ruas devagar e, em um cruzamento, parei calmamente e não recebi qualquer advertência do amigo motorista que me sucedia. Viva a greve!
Andei vendo pela televisão que a violência também diminuiu. Felizmente, o lado bom do lado ruim da vida se apresentou também...
Pena que Deus não parou na greve. Continuou seguindo protocolos indecifráveis e recebendo nossos amigos mais queridos. Keyla, tão jovem e tão bela, cumpriu seu lugar-comum e deixou um cantinho especial nas minhas boas lembranças.
Sinto que fui como Bias, ao descrever a eventuais leitores pequenas passagens desses dias de greve. Mas o que é a vida senão um enorme lugar-comum em que nos precipitamos para escrever uma história, comum, mas sempre irrepetível? Daí, talvez, o encanto de algum lugar-comum.