Criança é criança

Quando menino eu tinha uma rotina diária das mais diversas, desde jogar bola, montar em jumento brabo sem cela, no “osso” e com um cipó fustigando o bicho pelos flancos só pra ver a popa, o salto do animal; tomar banho no rio do peixe num local conhecido como poço dos homens e depois, íamos visitar o sítio do seu Azarias em busca de manga madura, cajá, goiaba e cajarana; além de estudar é claro.

Para desenvolver essas atividades não havia uma agenda pré-determinada com anotações e rabiscos ou qualquer planejamento que pudesse organizar as minhas atividades diárias, como faz hoje muitas crianças nesta era de contemporaneidade massificadora, era da informação que a cada dia diminui mais a vida e o tempo útil da criança para brincadeiras e o lazer lúdico, sem a pesada carga de afazeres que tem como disciplina e obrigação diária desde os anos mais tenros de sua existência. Eu utilizava muito bem o meu dia-a-dia, entretanto dormia muito cedo. Às 20:00 horas tomava o caminho da rede. Rezava e ia dormir.

Hoje, a rotina de uma criança é o oposto da rotina que eu vivia na infância. A criança nestes tempos de modernização vai para uma creche com menos de dois anos de idade, antes de nascer a primeira dentição, ficando sem os cuidados do pai e da mãe o dia inteiro. A idade escolar começa cada dia mais cedo. Tempo para brincar? Tempo para travessuras? Tempo para recreio? Tempo para conquista de amizades na rua? Brincadeiras e lazer na rua? Amigos de infância? Fortalecimento de vínculos? Não.

As escolas estão cheias de crianças tristes, que passam a maior parte do seu tempo com atividades didáticas, estudos e aulas, trabalhos escolares e horas a fio em frente de uma tela de computador seduzidos por jogos violentos e as redes sociais, sem o contato físico e a cumplicidade de pais, familiares e amigos. São crianças reféns de uma sociedade de consumo que aprisiona o cidadão dentro de si mesmo, em função da violência, dos padrões de consumo e do medo que este provoca nas pessoas, criando nelas o pânico pela sociedade de agora.

Voltando à minha infância. Pela manhã estudava até as 11:00 horas. Voltava da escola e ia jogar bila, castanha, triângulo ou pião na rua com outros garotos amigos da rua. Hora do almoço, chegava o apito da Usina de Docil Braga – às 13:00 horas tocaria novamente e também às 17:00 horas. Almoçava e de tarde ganhava o mundo para tomar banho de rio, nadar até chegar em casa preto que só um tição e levar uns cascudos da minha mãe que me apontava o banheiro para tirar o grude! Eu não gostava: - Eu já tomei banho no Rio do Peixe! - Eu dizia. Ela reclamava: - Não seja besta, vá tomar banho! Eu corria logo para o banheiro, não queria ver a minha mãe engrossar.

No outro dia, a atividade era caçar passarinho com minha baladeira, apesar de que sempre fui um mau atirador, mas valia pela viagem pelos matos, pelo passeio e melhor ainda quando a gente levava gaiola e alçapões para pegar passarinhos, que me satisfazia muito quando pegava um galo-de-campina, uma graúna ou caboclo Lino, golinha ou concriz, um bigode. Vez em quando a gente pisava numa melancia madura no meio do mato e aí, a gente se esbaldava chupando melancia doce. No inverno o bom era isso, fartura e muita fruta pra gente comer. Na beira do rio, a gente encontrava sob a vegetação ninhos de Guiné com 20 ou 30 ovos e isso dava uma fritada que era uma festa. A gente ainda colhia mel de abelha em nossas idas ao mato, que naquele tempo não tinha esse negócio de apicultor, não.

As nossas brincadeiras na rua eram uma coisa de época: época do jogo de Castanha; do Triângulo, do Pião e Jogo de Futebol de Botão. A gente também quando tinha muito vento soltava Pipas (papagaios) e corujas pelo céu azul do sertão. Não usávamos outro material que não fosse linha zero ou nylon. Não era uma brincadeira perigosa como se faz hoje em dia com o cerol e cacos de vidro.

Havia ainda a brincadeira de vaquejada em que éramos vaqueiros e bois para sermos derrubados pelo rabo. Em nossa vida de criança, tempo de criança, não havia orgulho, inveja, maldade, mau comportamento ou sentimento pequeno. Qualquer desconfiança entrava em ação o veto familiar protegendo-nos contra desvios ou más companhias.

Tantas brincadeiras, tantos momentos recreativos e ainda havia contação de história com velhas senhoras; vizinhos contando estórias à beira de uma calçada apinhada de meninos ávidos e atentos para ouvir relatos sobre botijas, seres mitológicos, monstros, reinos distantes, príncipes e princesas, bobos da corte e a vida do sertão e de além-mar, despertando a nossa fantasia, num tempo de crença em Papai Noel.

Não havia tempo ruim para jogar bola. Jogávamos numa rua pavimentada de paralelepípedos que chamávamos de "TORA DEDO" por que sempre havia um jogador sem uma unha, com um pé esfolado, com a ponta dos dedos arrancada fruto de um chute errado, mas, nunca deixamos de jogar por lá. Aos domingos a nossa maior diversão era assistir as matinés do Cine Moderno. comer Pipoca, amendoim, chupar cana, trocar revistas em quadrinhos ou comprar uma revista nova do Tio Patinhas, Tex, Super Homem e tantos heróis de nossa infância. Na abertura de um filme Faroeste, quando parecia o Pássaro Condor na tela voando em círculo a garota ficava louca na maior zoada para espantar o bicho, era uma festa! Eu não voltava pra casa sem trocar revista com algum outro garoto.

Somos adultos hoje. E o tempo é nosso companheiro, cúmplice na história de nossas vivências próximos da rua velha rua estreita, do "Tora Dedo" e do Campo de Murilo; do Velho "Estádio Chico Velho Vieira" que alagava no inverno e ficava por trás do Colégio das Freiras. Quantas histórias...

O que nossas crianças têm para contar? Já pensou nisso?

Tudo que as gerações de agora conhecem é pela lente de um fotógrafo, uma filmadora, uma tela virtual. É preocupante. ESTAMOS TRATANDO CRIANÇAS COMO ADULTOS, COMO NA IDADE MÉDIA. CRIANÇA TEM QUE SER CRIANÇA EM QUALQUER TEMPO.

Edilberto Abrantes
Enviado por Edilberto Abrantes em 31/05/2018
Código do texto: T6351604
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