Assim ou ... nem tanto. 140
A Amor
Um dia, disse, todas as coisas dispersas se juntam em nós, e passam a ter sentido. Como letras que, a duras penas se aprendem, se desenham, se juntam para gerar sons que tardam a fazer luz ou, para alguns, a fazem tão rapidamente como uma surpresa, um raio ou um milagre. Soletramos. No vagar da coisa, as sílabas perdem-se, temos de voltar atrás, trazer tudo à boca e apressar a cadência. A seguir, a cabeça liga-as, as palavras aparecem e ficam guardadas para outra ocasião no lugar secreto do cérebro onde as iremos chamar um dia. Guardei lá, entre outras estranhas, a palavra amor, referiu. Quando a aprendi era um vocábulo cego. Lia-se, deixava-se dizer, mas, na verdade, nada mais significava para o homem novo que eu era, corpo a crescer ainda, ainda vazio de emoções mais fortes que um susto, uma promessa, um ralho agreste. Quando me senti mais só e procurei, sem encontrar, a razão, uma voz de quem não sei me sugeriu que talvez fosse útil procurar alguém para ver o mar. Quem diz o mar diz o rio, o céu, a verdura, as árvores, o bom que é o vento no verão ou o doce abandono numa meda de palha com o alto azul e pontos vermelhos a bailar, suaves, sempre que os olhos rasassem o chão. Papoilas, diriam, flores vermelhas, se não lhes soubessem o nome. Isso mesmo. Segui o conselho e vendo com força, te achei de pele sedosa e olhos vivos, boa para ver comigo o mar. Falavas nos silêncios, escutavas como se tudo o que eu dizia fosse canto. Para ti eu era único e tu, para mim, terias de ser algo mais que Maria. Chamei as palavras guardadas e escolhi a que era cega, a amor. Logo que veio apressada, excitada, emocionada por vir, recuperou e vê tudo o que se esquecia de ver.