Cerveja, Truco e Alzheimer

Eram duas horas da tarde de um belo dia ensolarado e muito quente, quando resolvi comprar quatro latinhas de cerveja. O mercado ficava próximo à casa de uma amiga. Ela, que simpatiza até demais com o álcool, animou-se e pediu para que eu fosse até a casa dela:

- Vamos jogar truco e tomar uma cervejinha, meu avô está dormindo – ela disse.

Fui até o mercado, comprei as cervejas e cinco minutos depois eu estava no portão da casa dela. Apertei a campainha. Nada. Chamei-a pelo nome. Nada. Os dois cachorros enormes começaram a latir enquanto eu chamava. Até que cinco minutos depois ela apareceu à porta, pedindo desculpas, me explicando que estava tomando banho:

- Eu saí rapidinho do banho, e você sabe, meu avô é surdo, então provavelmente não escutou a campainha.

- Tudo bem! – respondi – Sem problemas. Aqui estão as cervejas.

- Ótimo, vou pegar o baralho!

Ela foi até o quarto e voltou um bom tempo depois. Sempre foi muito desorganizada, e era por isso que eu a adorava: porque eu também sou.

- Demorei pra achar, mas ta aqui! – ela falou.

Começamos a jogar. Pedi truco na primeira, ela ganhou de seis. Perdi novamente na segunda, e finalmente consegui ganhar na terceira. Foi ela quem havia me ensinado a jogar, então já sabia quando eu estava blefando.

- Nossa, você está péssima pra jogar hoje, hein! – ela falou, dando risada.

- Acho que enferrujei mesmo! – respondi.

Estávamos sentadas na sala, quando ouvimos o barulho familiar do chinelo de pano do avô dela se arrastando pelo corredor. Ele era um senhor de aproximadamente oitenta e cinco anos, cabelinhos brancos, olhos claros, e muito, muito mal humorado.

- Que bagunça é essa aqui, Isadora? – ele perguntou, olhando para a sala e vendo as latas de cerveja, o baralho e o cinzeiro com bitucas de cigarro.

- A gente só está jogando truco – ela respondeu.

- Truco, sei!

Ele deu meia volta e saiu arrastando o chinelo de pano pelo corredor. Enquanto caminhava até a cozinha, ouvimos ele resmungando sozinho. Alguns segundos depois, voltou à sala com um copinho:

- Faz tempo que eu não tomo uma cervejinha... – ele disse, sorrateiramente – Coloca um pouquinho no copo pra mim!

- Não sei não hein, e os seus remédios? – minha amiga perguntou.

- Que remédio o quê, menina? – ele respondeu bravo – Já to velho, com o pé na cova e não posso nem tomar um gole de cerveja? Põe um golinho pra mim aí!

Minha amiga relutou, mas colocou um pouquinho da cerveja no copo dele. Ele tomou a cerveja rapidamente e falou:

- Ah, sim... Isso sim é bom! Vou limpar a geladeira, vê se não bagunçam essa sala porque eu odeio bagunça aqui!

Ele voltou pra cozinha arrastando seu chinelo de pano.

- Acho que não tem problema ele tomar só um golinho de cerveja! – falei pra ela.

- Você que pensa! – ela respondeu – Esses dias eu deixei uma latinha na geladeira, quando vi, ele tinha tomado a latinha inteira. E como ele tem Alzheimer, quando ele bebe, esquece das coisas mais rápido ainda. Passou o dia inteiro se esquecendo de tudo.

Continuamos a jogar. Finalmente comecei a melhorar e ganhar mais partidas. Nós estávamos levemente embriagadas quando ouvimos o avô dela arrastar o chinelo de pano novamente pelo corredor:

- Isadora! – ele apareceu na sala carregando uma vasilha – Que porcaria é essa aqui?

Ele mostrou a vasilha contendo um pouco de macarrão, meio cru.

- Não fui eu que fiz. –ela respondeu – Foi o Tiago, seu outro neto.

- Filho da puta! – ele olhou para a vasilha, indignado e arrastou o chinelo de pano de volta para a cozinha.

Nós começamos a rir e voltamos a jogar.

- Meu avô se estressa toda vez que vai limpar a geladeira – ela comentou.

- Eu percebi.

Dois minutos depois, ouvimos novamente o barulho do chinelo de pano se arrastando pelo corredor:

- Isadora, que merda é essa aqui? – ele segurava a mesma vasilha contendo o macarrão meio cru – Tava dentro da geladeira!

- Foi o Tiago, vô... – ela respondeu novamente, impaciente.

- FILHO DA PUTA! – Ele olhou para a vasilha novamente e arrastou o chinelo de pano, indignado, de volta para a cozinha.

Comecei a rir e comentei:

- Cara, ele esqueceu de novo e xingou o Tiago as duas vezes!

- Pois é, eu não devia ter dado aquela cerveja pra ele... Falando em cerveja, a minha já acabou. Quer comprar mais?

- Quero, mas não quero sair nesse sol, vá você no mercado agora... – respondi.

Ouvimos o barulho do chinelo de pano se arrastando novamente pelo corredor. Minha amiga virou-se para mim e falou:

- Vamos apostar: Se for ele falando sobre outra coisa, eu vou ao mercado. Mas se ele voltar perguntando sobre o macarrão pela terceira vez, você vai!

- Fechado!

Pela terceira vez, ele apareceu com a mesma vasilha, olhando-a indignado:

- Isadora, que merda é essa aqui? – Ele perguntava bravo.

- Foi o Tiago que fez.

- FILHO DA PUTA! – pela terceira vez, ele olhou indignado para o macarrão meio cru e arrastou o chinelo de pano de volta para a cozinha.

Nós duas rimos novamente e eu me adiantei para ir ao mercado. Comprei mais algumas latinhas de cerveja e voltei à casa dela. Nós abrimos as latinhas e voltamos a beber, quando escutamos pela quarta vez o chinelo de pano se arrastando pelo corredor.

- Eu não acredito que ele vai perguntar do macarrão de novo! – ela comentou, indignada.

Mas para a nossa surpresa, ele não trazia uma vasilha. Ao invés dela, trazia consigo um copinho de vidro e sorriso no rosto:

- Isadora, faz tanto tempo que eu não tomo uma cervejinha... Coloca um pouquinho no copo pra mim?