A GENTE PRECISA DE TANTA COISA

Querem abrir igrejas por todos os cantos com todos os nomes possíveis. Talvez seja melhor abrir igrejas que bares. Na esquina, o padeiro que acordava cedo resolveu ser pastor e abriu ali a sua missão de evangelizar o bairro novo. Será agora assador de corações aflitos, fermentador da massa. Em nome de Jesus ele fala o que vem em sua mente como que hipnotizado. Eu sei pelo fato de eu passar em frente ao pequeno cômodo que acomoda em cadeiras brancas de plástico entre uma e duas dezenas de pessoas que o escuta com atenção. A palavra dele entra em minha mente. Fica dentro de mim até eu decidir, quando volto para a minha humilde residência, que vou escrever um poema ou um conto com outro foco, e não o sermão que grudou em minha mente.

Eu preciso que no bairro novo, onde adquiri minha nova caverna moderna, alvenaria branca e barata, feito a toque de caixa, financiada pela Caixa Federal, tenha, por exemplo, uma livraria, um teatro, uma sala de cinema e também igrejas, católicas, evangélicas, centro espírita, mesquita, sinagoga, e altares de todas as religiões de denominações do mundo. Tudo que satisfaz a alma inquieta de homens e mulheres, moradores do novo bairro.

A escola também é necessária. As crianças podem estudar por aqui mesmo e não caminhar até o bairro mais antigo, para estudar na escola mais antiga, com os professores mais antigos, usando os métodos didáticos tão antigos. Aqui no novo bairro, onde os novos moradores têm sonhos tão antigos como o de serem livres, precisa-se de uma nova escola onde se ensina de verdade as verdades que precisamos saber.

Também será preciso uma farmácia por aqui. Os novos moradores quando vieram trouxeram em suas bagagens e caixas de mudanças as velhas doenças. Farmácia que venda ômega 3 e remédio de tarja preta. Que venda absorvente para quando as mulheres vierem a menstruar e o teste para quando a menstruação deixar de vir. Nesse caso precisará, em breve, de fraldas descartáveis. Farmácia é sempre necessário em qualquer lugar. A dipirona para pingar dentro do dente ocado e o xarope para quando a gripe pegar a gente na chegada do inverno.

A gente precisa de tanta coisa no bairro novo que eu pedi a um membro da nova igreja do pastor que não amassa mais o pão de cada dia, que ore para que tenhamos vida em abundância por aqui. Que para isso é preciso que tenhamos estrutura. E comecei a dizer tudo o que esse novo bairro precisa. O senhor de bigode ralo e contrito em sua fé disse que vai propor um mês de campanha espiritual pelo bairro.

Mas de uma coisa eu tenho certeza, não precisamos aqui do movimento. E você sabe de que movimento eu falo. Se religião for mesmo o ópio do povo, eu prefiro esse ópio que o pó ou a pedra que traz em seu bojo a prostituição e a violência. Nem quero também por aqui a milícia criminosa.

Não precisamos ser pastores para fermentar a massa, mas no bairro novo, todos nós precisamos assar o nosso futuro. Participar da associação e construir aqui o amanhã que queremos. Talvez a gente não precise sempre estar mudando de moradia, mas é preciso constantemente mudar dentro para não cair no comodismo, e fazer de um bairro, ainda que novo, mais um velho vilarejo da degradação humana.

Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 19/05/2018
Reeditado em 19/05/2018
Código do texto: T6340407
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