PERALTICES

Dá gosto observar a graça das peraltices praticadas por crianças inteligentes. Marcelo e Neco – Deus queira que ainda vivam felizes – eram meninos desse tipo. Marcelo tornou-se professor de física quântica numa importante universidade e Neco biomédico, dedicado à pesquisa da hereditariedade de doenças, num respeitável instituto internacional de biomedicina. Irmãos, distantes pouco mais de um ano na idade. Na adolescência, sempre estavam bolando alguma divertida e original molecagem.

Nascidos e criados em Salvador, BA - mais precisamente no Barbalho - aproveitavam ao máximo o espaço residencial composto de amplo quintal. Um casal de cães dálmatas eram seus íntimos amigos e assessores. Serviam-lhes para desabafo e consulta sobre qualquer “nova peraltice” planejada. Aqui vai uma das suas.

Estavam na flor da adolescência quando ganharam de um tio, fazendeiro em Amargosa, um filhote de papagaio ainda mal emplumado. Logo o batizaram com o nome de Aristides. Neco se vestiu de padre e leu a oração dos animais, que eles mesmos redigiram, inspirados nas aulas de catecismo.

Ensinaram a Aristides todos os tipos de palavrão e comandos de baixo calão: “Vá...”. O papagaio aprendeu o repertório invejavelmente. E de pouco adiantava alguém ralhar com Aristides ou ordenar-lhe que calasse o bico. O palavreado aumentava em volume sonoro e repertório.

Dona Nilva Loureiro, mãe dos “abençoados”, já sabendo disso, nem mais reclamava tampouco dirigia palavra ao papagaio. Quase que diariamente rezava o terço em voz alta e cantava hinos religiosos, no intuito de ensinar boas maneiras a Aristides. Até que alguma coisa ele andou aprendendo e já não repetia apenas seu sujo repertório com muita freqüência. Misturava um pouco as palavras. Progresso que era dramaticamente quebrado quando alguém o acordava, à noite, acendendo a luz do ambiente onde dormia: no fim do corredor que dava para o quintal.

As pessoas aprenderam a passar por ali no escuro e em silêncio. Mesmo assim, não era raro alguém negligenciar esses cuidados e, ao acender a luz, o “pau quebrava” no bico da ave.

Foi por isso que dona Nilva passou a fazê-lo dormir na sala de visitas. Um salão quase inútil na casa, com móveis vitorianos, destinado a receber visitas ilustres. Raras - diga-se - desde que ficou viúva. Tudo permanecia na santa paz com as luzes apagadas, janelas e portas fechadas até o clarear do dia seguinte.

Certa feita, as paroquianas organizaram uma novena itinerante em louvor à padroeira. Cada dia da semana a reza do terço e cânticos de entrada e encerramento ocorreriam numa das casas escolhidas. A dos Loureiros não escapou. Quarta feira, a partir das sete da noite.

Para liberar o salão de visitas, puseram Aristides no banheiro mais remoto. Nos fundos da casa. Bem pensado, pois a casa ainda tinha dois

banheiros próximos de fácil acesso aos participantes da reza. Mesmo assim, dona Nilva pediu para que as orações fossem feitas em voz baixa. Ninguém sabia por que, mas era para não despertar Aristides.

Tudo ia bem até que dona Abigail sentiu vontade de esvaziar a bexiga ou o intestino, quem sabe, ambos. Carola sessentona, gorda, de pernas arcadas, sempre carente de alguém ou de algo para apoio no deslocamento. Ela tinha plena certeza e consciência de que seus ofícios sanitários eram barulhentos e, às vezes, espirrados à moda chapisco. Pediu um banheiro mais distante possível para evitar vexame. Marcelo e Neco, nas redondezas indicaram o caminho a ela e sua acompanhante. Foram bater no banheiro onde tranquilamente dormia o papagaio. Marcelo e Neco aguardaram para ver o resultado.

Não deu outra. Ao acender da luz, Aristides disparou sua imunda verborréia. E quanto mais dona Abigail gritava horrorizada, Aristides caprichava no volume e nas palavras. Para horror da carola, a ave misturava os xingamentos com algo da reza que havia aprendido. Neco e Marcelo esbaldavam-se em risadas. A barulheira, claro, fez interromper a reza. Quase todos se dirigiram ao banheiro dos fundos para socorrer quem gritava. O quadro era triste e cômico. Dona Abigail, com calcinha nos pés, titica borrifada pelas paredes e mau cheiro preenchendo o ambiente. Aristides voava de um lado para o outro, sem esquecer uma só palavra de seu deselegante vocabulário.

A confusão só terminou quando Neco jogou uma toalha sobre Aristides e o levou abafado para uma gaiola abandonada, no quintal.

Nem se precisa dizer que a reza acabou naquela noite, transferida para outra casa no dia seguinte. Nem o canto de encerramento chegou a ser entoado. Foi um baita vexame que custou a eliminação definitiva da residência dos Loureiros como palco das novenas itinerantes.

Dona Nilva e todos carolas rezadores culpavam Aristides pelo tumulto. Pediam sua cabeça, sem piedade. Marcelo e Neco não tinham dúvida: dona Abigail era o pivô da anarquia, a quem aconselhavam andar mais bem arrolhada. Contam até hoje, com graça e gestos, esse episódio de suas vidas de moleques adolescentes.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 18/05/2018
Código do texto: T6339795
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