Café e Poesia

Eu acordava cedo. Mas não precisava entrar cedo no trabalho. E meu dia só era completo quando ia a cafeteria que ficava bem no meio do caminho do meu trabalho. Era uma cafeteria pequena e tinha um ar tão acolhedor, que perdíamos as horas lá, tomando um café, um cappuccino e ouvindo poesias. Bem, esqueci de contar. O dono, Seu José, era um portuga daqueles que irradiava alegria por onde passava e ali, naquelas duas portinhas espremidas entre prédios e casas famosas já havia quarenta anos que ele perdurava. Seu José fazia o melhor café da região, o melhor cappuccino da região. Ele só tinha uma regra: só ficava em seu café quem aceitasse sua poesia. E ele dava pequenos trechos de poema junto com o café que servia. Ô portuga inteligente! Declamava Camões, pulava para Augusto dos Anjos e sorria, depois declamava Fernando Pessoa. Dizia que amava poesia tanto quanto o café, que descobrira quando chegou ao Brasil, ainda moço. A poesia, lógico, já o acompanhava, mas foi aqui que ele se apaixonou de vez ao conhecer os poetas brasileiros. Leu Drummond de Andrade, Castro Alves, Manoel de Barros, Hilda Hilst e Cora Coralina, mas se apaixonara por Augusto dos Anjos, que dizia ver beleza na morte, a qual ele dizia que não temia. Quem passava na rua estranhava toda aquela barulheira pois, a cada dois ou três minutos ouvia-se palmas e grandes risadas. "Mas não é uma cafeteria ali?", muitos perguntavam. Certa vez recitei “dos Anjos”, como Seu "Zé" gostava de chamar. Com aquele bigode bem característico e seu sotaque carregado, dizia não ter preferidos, mas todo mundo sabia que ele amava Augusto dos Anjos. Ora gajo (chamava todos assim), pois leia dos Anjos e dou-te um café! E ele gargalhava. Para trabalhar lá na cafeteria precisava ser poeta. Tinha prova, tinha que declamar algo e já ter lido algum poeta, português ou não. Talvez por isso só havia lá hoje, a Moema, filha de Seu Zé. Tímida, mas tão amante de livros e poesia como o pai, se enrubescia só na iminência em ler algo, daí o carinhoso apelido dado pelo pai, "minha tomatinha". Gostava tanto daquele lugar, da atmosfera alegre. As cadeiras eram velhas e de madeira, não eram jogos, vinham cada uma de um lugar. As paredes, decoradas com fotos, de lugares, de clientes, de famílias. E poemas, vários espalhados assim como livros pelas prateleiras. E no ambiente se misturava o cheiro de biblioteca e café acabado de passar. Foram ótimos anos os meus ali. Depois me mudei de trabalho e vinha pouco ao café. Mas me esforçava em vir, ver aquele ambiente, aquele espetáculo poético. Admito que Seu Zé despertou em mim o gosto pela leitura. Eu não escrevo bem, mas não pude deixar de escrever esse texto, até mesmo para Moema. Não pude acreditar. Um ano já. O café fechou. E só soube o motivo um tempo depois. Eu não fui ao enterro. Não dei pêsames a você, Moema. E chorei, como muitos amigos de Seu Zé. Pois sim, não éramos clientes, éramos grandes amigos que compartilhavam o amor que seu pai, nosso amado Zé tinha, pela poesia e pelo café, que o acompanharam com tanta alegria por sua vida. Eu fui ao cemitério, Moema. Demorei a achar a lápide. Estava chovendo e sabia como seu pai era simples e simples sim era sua lápide. Pensei que choraria ao sair de lá, ver seu túmulo. Qual não foi meu espanto, saí de lá em alegria. O coveiro, coçou a cabeça de estranhamento pelo meu sorriso. Só pude ver ele seguir para a lápide. Seu Zé era amor a poesia, e em tudo botava ela: no nome do seu café, na sua vida e até em sua morte na lápide, poesia! E nela, na lápide, o que me havia tirado um sorriso, naquele dia chuvoso, dizia:

"Pois fui embora dessa vida, como folha no Outono. Na face um sorriso e uma dor aguda no coração. Mas sempre com alegria eu servia, pois foi minha sina, Um café e poesia!"

Dom Torres
Enviado por Dom Torres em 16/05/2018
Reeditado em 16/05/2018
Código do texto: T6338006
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