A mulher de quarenta anos
Eu sou uma mulher de quarenta anos.
Olho no espelho e não vejo os anos que tenho.
E quando me olham também não veem essa idade. O que é ruim. Porque eu acabo acreditando que tenho quase trinta. Mas meu RG não mente. Nem as lembranças que tenho. Nem o meu corpo, que embora por fora seja atrativo, por dentro tem, sim, a idade real, talvez mais, uma vez que algumas partes de mim eu conscientemente maltratei. Fígado e útero, por exemplo, já que o coração não conta.
Eu sou uma mulher de quarenta anos e hoje meu nome é fúria.
Incomoda-me o fato de, ao chegar, ter de cumprimentar um por um, todo colega de trabalho até chegar à minha mesa, que é quase a última dessa sala impessoal e caótica e quente e barulhenta... Porque se eu não o fizer, serei a antissocial. A antissocial que na verdade eu sou, mas exercito aqui minha veia artística e finjo, finjo, finjo.
Finjo, por exemplo, que este trabalho é minha prioridade na vida. Quando não é.
Não faço questão de aprender coisas novas, pois assim como as velhas (que já conheço) elas não me parecem importantes.
Então eu finjo preocupação, zelo e interesse por essa papelada toda, que eu nem mesmo me dou ao trabalho de saber porque existe. Tenho para mim, que poderia não existir, inclusive, uns 70% dela (a papelada) e que só existe porque somos burocratas.
Gostamos de senhas, de filas.
De senhas para pegar filas.
Papéis: originais e xerox, preferencialmente autenticadas. Comprovantes, declarações, certidões, carimbos. Exigências múltiplas e desconexas para que as pessoas se confundam, e esqueçam. Criamos dificuldades para vender facilidades.
Assim somos, e isso fazemos.
Não eu, no caso, mas a minha personagem. E os outros todos, que não sei se atuam ou se são, naturalmente, assim.