Na trilha da vida 
 
Hoje dois de março de 2007, testo a frágil memória de meus setenta anos, para descrever minha luta por um dia melhor, mais humano e mais justo. No decurso de minha vida toda construída e constituída com as mãos abertas para servir nunca me envergonhei de pô-las também em concha para receber. Reconheço minha pequenez diante da grandiosidade de meu Deus. Sei que não sou indigno de merecer tantas bênçãos do céu, mas o Senhor viu a humildade de meu coração e caminhou comigo cada palmo da estrada. Até os três anos de idade, não guardo memória de nenhum fato relevante. Porém, aos quatro, ganhei minha primeira alpercata corrulepe. Uma espécie de sandália com uma tira passando entre o dedão e seu vizinho. O solado nem sempre de sola, no compasso de cada passo, batia na planta dos pés gerando o som: corrulep, corrulep...

A corrulepe é precursora da sandália japonesa e traz consigo uma designação pejorativa de salga-bunda. Isso porque, não tendo rabicho, ao se andar, vai levantando areia e jogando no traseiro do indivíduo. Ainda assim, foi grande minha alegria ao ganhar minha primeira corrulepe confeccionado por meu pai. Naquele dia, embora com apenas quatro anos, botei o pé na estrada e fui sozinho, até a casa de meu avô Mariano, à procura de Mãe-Duca, para mostrar-lhe o presente que ganhara. Mãe-Duca era uma das tias que tinha por mim um carinho de mãe e morava ali, pertinho, a menos de 400 metros. 

- Cadê Mãe-Duca? Perguntei. 
- Está na roça colhendo feijão. Respondeu vovó Delfina, lançando um olhar sobre minha sandália nova. Afoitamente, lancei-me em direção ao roçado. Logo que passei da porteira, emaranhei-me numa touceira de carrapichos. Um grito inocente ecoou no silêncio incontido de minhas lágrimas de criança, como o uivo choroso de cachorro desmamado. Pela primeira vez senti na pele os espinhos de carrapicho que o inimigo semeou no meio do feijoal. Senti-me só. Sozinho e embaraçado nos espinhos de carrapicho do caminho. 
Muito atenta, Mãe-Duca ouviu meus berros e veio prestar o necessário socorro. 

- Meu “caçulo”, que você está fazendo no meio desse mato? Como posso agora levar um saco de feijão e ainda você na cacunda! 
- Vim mostrar “asapragata” que papai fez pra mim. 
Ela me abraçou e disse: “É muito bonita suas precata, mas vamos voltar pra casa, o sol tá quente demais pra você.” 
Mãe-Duca não tinha boa flexão nas pernas, pois lhe faltava numa delas a rótula do joelho. Mesmo assim, jogou-me no tuntum e com a outra mão, levava quase arrastando o saco de feijão em vagem. Arrastada e penosa foi também a caminhada até a casa, e no passo descompassado da perna que não dobrava, foi vencendo pacientemente a pequena distância entre o roçado e sua morada. Então, pondo-me no batente da janela, começou a catar em mim os carrapichos, um por um e elogiar minha coragem de ter vindo sozinho. 

A vida no campo, naquele tempo, não representava nenhum perigo, andava-se com liberdade por caminhos, veredas e atalhos, sem cruzar com nenhum malfazejo. Ao contrário, era comum encontrar parentes, amigos ou conhecidos mais velhos, que iam ou vinham do serviço. Nenhum menino passava por eles sem lhes pedir a bênção. O respeito e a obediência aos mais velhos eram salutares ensinamentos passados de geração a geração. Não se ousava interromper a conversa dos adultos. Adulto estava falando, menino não dava um pio. Nem ficava perto, a não ser que um protetor dissesse: “Deixe ele participar da conversa. É um menino homem”. 
Em junho de 1944, com aproximadamente sete anos, minha mãe fez uma roupa nova pra mim. Era festa do padroeiro. Os freis franciscanos, Serafim e Gregório celebravam com a comunidade os festejos de Santo Antônio. Como não dispunham de palanque, fizeram de uma mesa seu púlpito e durante o sermão, postei-me ali debaixo a arremedar os gestos de Frei Serafim. Fiz-me estátua viva, gesticulava, fazia mímicas e repetia seus movimentos, abrindo e fechando a boca com a mesma cadência das palavras do Frei. Em determinado momento, o pregador viu aquele pirralho, abaixou-se e deu-me um puxão de orelhas daqueles que o sujeito fica na ponta dos pés. O pior ainda, é que minha irmã viu a cena e contou à minha mãe. Pensei que fosse levar uma surra! Mas mamãe agiu com serenidade e disse-me simplesmente: “Amanhã cedinho, você vai se confessar ou conto tudo pro seu pai!”. No dia seguinte, ensinou-me a oração do penitente e fui procurar o confessor. Meu coração sofria uma inquietação medonha!“Não vou confessar com Frei Serafim”. Fiquei de espreita. Frei Serafim estava no confessionário... E se ele me reconhecer e me der um puxão de orelhas... uma sabatina... Peguei a fila assim mesmo! A fila era grande e o Frei já estava ali há algumas horas. A contrição de meu pecado, se é que foi pecado, veio mesmo antes da confissão, só de pensar que teria de acusar-me de ser o menino que estivera arremedando o sermão do padre... Pensar nisso, já era um grande flagelo para minha pequena alma, mas estava lá para penitenciar-me. Talvez até rezando no silêncio interior para Frei Gregório chegar e assumir o lugar do outro. Por sorte, em dado momento, Frei Serafim levantou-se, deu uma espreguiçada e caminhou em direção à porta. Em seu lugar sentou-se Frei Gregório. Confessei-me. Aquele “pecado” o menino não confessou de viva voz. Fiquei com a consciência pesada por longo tempo até entender que meu pecado era público, não precisava confessar, todos viram e já tinha recebido o castigo... 

Fiz minha primeira comunhão com Deus e tirei uma grande lição. Muitas vezes para nos aproximarmos de Deus, precisamos levar primeiro um puxão de orelha.