Um pulo na venda
Domingo de manhã era hora de “desfiar o rosário”. Até hoje não sei o porquê da expressão tantas vezes empregada por meus pais e por outros adultos da vizinhança, embora não haja se apagado da minha mente o seu significado depreendido das ações por ela presumida. O velho tomava o saco de linho impecavelmente alvejado para a compra semanal, ele tinha uma lista mental do trivial na qual minha mãe fazia pequenas alterações a cada domingo, suprimindo ou acrescentando um ou outro item conforme houvesse sido o consumo naquela semana.
Numa mão ele levava o saco e um recipiente de vidro. Eu ia na sua mão livre, feito um apêndice, saltitando às vezes para poder com o ritmo de seus passos firmes. As impressões da meninice marcam tão fundamente que podemos reconstituir, mesmo passadas décadas, pequenos lugares e fisionomias que nos foram caras. Na Rua da Vargem posso ver novamente, logo ao sair de casa, o terreno amplo e desocupado num aclive a partir da rua de terra. Era cercado de arame farpado e coberto de vegetação onde predominava o assa-peixe, lembro-me que alguns exemplares eram tomados por uma planta parasita chamada de cipó chumbo, um grande tufo de fios pendentes de um alaranjado muito vivo. Num plano superior ao das casas do lado de baixo da rua ficava uma casa antiga de telhas francesas e janelas de madeira, com o piso ladrilhado com tijolos comuns. Desde que comecei a me entender por gente morava naquela casa a Dona Rita, a idosa mãe do Sr. Dião, que depois mudou-se para uma casinha nova, no ruado do Zé Camilo, um pouco abaixo da casa do Sr. Remígio. Na casa velha veio morar uma viúva idosa aparentada com meu pai, conhecida por Vica. Ela tinha um filho solteirão chamado João, que tinha os olhos azuis. Também na casa viria morar mais tarde o casal Sr. Quito e Dona Teresinha que tinham uma porção de filhos.
Depois tinha a casa do Sr. Juca Claudino, já muito idoso que morava sozinho com uma filha solteirona, chamada Luzia, que tinha problemas mentais e que muitas vezes procurava minha mãe para conversar. Guardo do Sr. Juca a impressão de um homem muito calmo e de profunda religiosidade. Na sequência estava a casa do Zé Bentinho e da Dona Nilza, não a nova que ainda existe, mas a outra, velha, de telha, onde o casal criou seus dezoito filhos. Na verdade, era a sede da fazenda que se estendia por toda a região onde hoje está o Bairro Bela Vista. Zé Bentinho tinha criação de gado e mantinha um velho engenho de cana que cheguei a ver em atividade, movido por uma junta de bois.
Temos muita gente a registrar aqui e não faltará oportunidade, mas estou indo com o Sr. Chico desfiar o rosário na venda do Sr. Alcidinho, já no começo da Fartura, perto da casa do então prefeito, Sr. Benjamim Martins. O vendeiro era um homem de baixa estatura, mas de compleição robusta, que caminhava pesadamente. Bonachão, característica comum a todos os vendeiros que conheci, fazia pilhérias brincando comigo enquanto pesava as mercadorias que eram vendidas a granel, armazenadas em grandes caixotes ou latões. Com uma concha ele enchia os sacos de papel, colocava no prato da balança e ia dosando até completar o peso. O querosene para as lamparinas era medido num litro que o freguês levava de casa e a máquina de moer café tinha a esperteza de adivinhar quando completava meio quilo e se desligava, sozinha.
Na venda o que mais me impressionava era a mistura de cheiros, facilmente presumível só pela descrição dos produtos. Mas eu achava o exíguo recinto muito aprazível e tentava guardar nas retinas as imagens das prateleiras repletas de alimentos para a hipótese de que o fantasma da fome cismasse de me assombrar.