A dádiva de ficar só, sem sentir-se sozinho
Levanta, lava o rosto, escova os dentes, toma um banho. Faz café, bebe o café, responde algumas mensagens no celular. Pega a bolsa, a chave do carro, a chave do portão. Abre o portão, entra no carro, tira o carro da garagem, sai do carro, fecha o portão. Volta pro carro. Tudo isso antes das seis da manhã. O trânsito caótico exige tempo e paciência. Coloca uma música pra dissipar toda a ansiedade. Chega ao emprego. Trabalha o dia todo, o corpo e a mente se cansam, porém, a noite tem barzinho com os amigos, então, foi-se socializar. Chega tarde, toma um banho, dorme. Acorda e outro dia se inicia. Tudo se repete. Dessa vez, o passeio da noite é um filme com as amigas. No outro dia, um sorvete com um conhecido. E por aí vai. Passeios, viagens, filmes, embora cansada, é divertido. Sobrecarregada com as coisas da vida, precisava se distrair. Ligou pra um, não dava. Mandou mensagem pra outra, estava atarefada. Tentou falar com outro, não atendeu. E a mente em colapso. Trocou de roupa, pegou a bolsa, pegou as chaves. Abre o portão, entra no carro, tira o carro da garagem, sai do carro, fecha o portão. Volta pro carro. Ficou parada, segurando o volante com as duas mãos, sem saber pra onde iria. Foi dirigindo pela cidade, parou próximo a um café que emitia sons de jazz dentro de si. Estaciona. Pega a bolsa. Sai do carro. Entra no café. Senta na última mesa do lado direito. Pouca luz. Pouca gente. Fecha os olhos e suspira. O cheiro do café adentrava pelas narinas, mesmo sem o ter em sua mesa, ainda. Faz seu pedido. Delicia-se – com o café e com o jazz. Desliga o celular. Desliga-se. Nem viu o tempo passar. A música cessou-se. Nas mesas ao redor, apenas duas pessoas estavam. Levantaram-se. Pediu a conta. Pagou a conta. Levantou-se também. Saiu extasiada, sem saber exatamente o que sentia naquele momento. Voltou pra casa, tomou um banho, ajeitou a cama, programou o despertador e dormiu. Mais um dia, Levanta, lava o rosto, escova os dentes, toma um banho. Faz café, bebe o café, responde algumas mensagens no celular. Pega a bolsa, a chave do carro, a chave do portão. Abre o portão, entra no carro, tira o carro da garagem, sai do carro, fecha o portão. Volta pro carro. Tudo isso antes das seis da manhã. O dia seria corrido. O dia foi corrido. Pegou o carro e saiu por aí. Dessa fez foi ao teatro. Noutro dia foi ao parque. Na outra semana assistiu o show de uma banda alternativa que ela gostava. “Você sumiu.” Diziam. Curiosamente, foi preciso sumir pra se encontrar. Ela amava a companhia de seus amigos, se divertia junto a eles, mas também se divertia só. Passeios, viagens, filmes. Sem pressão. Tudo leve. Descobriu lugares. Conheceu novos gostos. Desfrutou de sua companhia. Vez ou outra, com os amigos ela saía. Muitos não a entendiam. Solidão ou liberdade, era ela que decidia. Optou pela liberdade e se alegrou por conhecer a dádiva de ficar só, sem sentir-se sozinha.