O ENFERMEIRO REVOLTADO

Obra no norte do Mato Grosso, distante mil quilômetros de Cuiabá, em meio a Floresta Amazônica. Usina Hidrelétrica do Salto do Rio Apiacás. A cidade mais próxima, Alta Floresta, a 140 km percorridos em quatro horas de viagem numa estrada de terra. Eu era gerente de quatro obras semelhantes a essa em 1985.

A logística de obras situadas em regiões pouco habitadas é bastante complexa. O Canteiro de serviços deve ser o mais autônomo possível, de modo a depender o mínimo dos recursos externos. Deve ter alojamentos para todos os funcionários, refeitórios, instalações de lazer, segurança do trabalho e patrimonial, radiocomunicação, transporte, casas para funcionários casados, casas para engenheiros e técnicos, captação e filtragem de água, tratamento primário de esgoto, etc.. Tudo isso sem citar os recursos para execução dos trabalhos: equipamentos de terraplanagem e desmonte de rochas, instalações de pedreira e jazidas, centrais de carpintaria, armação, confecção de embutidos metálicos, usina de concreto, laboratórios de controle tecnológico topografia, e uma infinidade de ferramentas e utensílios para limpeza, injeção de cimento, tratamento de fundação e outros serviços.

Além disso, é necessário um ambulatório para atendimento de emergências em casos de acidentes e doenças sem gravidade. Para tal, deve-se contar com um bom enfermeiro, experiente, que saiba executar pequenas intervenções como extrair unhas encravadas ou objetos, dar pontos em cortes, dar injeções de todos os tipos, conhecer doenças tropicais, etc. E nessa obra contávamos com um profissional desse porte. Belo dia, o cara pede as contas sem mais nem menos e sai da obra. Imediatamente pedi ao RH da empresa contratação de outro profissional que preenchesse a vaga. Porém não é fácil substituir um bom funcionário rapidamente. Nesse caso, o demissionário ensinara ao seu auxiliar diversas práticas de enfermaria, tais como aplicar injeções, indicar remédios de uso simples, tratar pequenos ferimentos. Ocorreram uns dois ou três casos engraçados,

O engenheiro fiscal foi à cidade com suspeita de malária e voltou com uma receita de três injeções endovenosas para aplicar em dias alternados. Sentou, colocou o braço na mesa e pediu para o auxiliar de enfermagem aplicar, virando o rosto para não ver sangue. Ao fim da aplicação, falou: “-Carlinhos, depois de amanhã venho tomar a segunda”. Carlinhos então respondeu: ”- Que segunda Doutor? Já apliquei as três!”. O engenheiro passou mal uns dias, mas sobreviveu. Carlinhos tomou conta do ambulatório e, com o passar dos dias, começou a usar roupa branca, como se fora um experiente profissional da saúde. Sabedor das limitações do sujeito, avisei-o que estava identificando um elemento qualificado para ser seu chefe. O cara não gostou muito mas nada expressou.

Voltei a Cuiabá, e, dias depois entrevistei o futuro enfermeiro. Autorizei a contratação e, após exames admissionais, o cara viajou para a obra. Na segunda feira seguinte eu fui com o avião da empresa até a obra. A pista de pouso era na estrada. Após descer do avião o Sr. Leonardo Hartman estava me aguardando. Era o encarregado geral da obra. Era um touro de forte. Homem acostumado na mata, havia participado da implantação de várias cidades como Sinop, Colíder, Alta Floresta. Seguiu-se o diálogo:

“-Leonardo, o enfermeiro chegou?”

“ - Chegou sim senhor. ”

“- E está tudo bem?”

“ - Tudo bem. O Carlinhos ficou revoltado e começou a quebrar o ambulatório na madrugada. ”

“-E ai?”

“-Acordei, dominei-o e amarrei em um tronco da cerca. Fui dormir a na manhã seguinte mandei leva-lo para Alta Floresta. Agora está tudo bem.”

“-Como? Você amarrou no tronco?”

“-Sim. Ele estava meio nervoso de manhã, mas falei para se acalmar.”

“-Não faça isso mais! Podemos ter sérios problemas com a justiça!”

“-Sim senhor, desculpe.”.

Fiquei imaginando o pavor que o cara passou, amarrado em um tronco em uma região cheia de onças, cobras (muita surucucu pico de jaca), aranhas caranguejeiras, uma noite inteira. Só no Mato Grosso.

Paulo MIorim