Vazio

Vazio

(ainda maior, um mês depois).

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza

“IN MEMORIAM”: Escrito no velório do Jardim Parque da Paz, por conta do falecimento de minha mãe Ana Domingues, aos 85 anos. (27.05.1933-11.02.2018).

“Só queria, agora, voar e ir para as estrelas”.

Ana Domingues.

NÃO DÁ MAIS PARA SEGURAR. Não dá! Não consigo, ainda que almeje com todas as forças que me alimentam. Eu preciso fazer alguma coisa, espantar a tristeza que me acumula. Tentar me redimir agora, ou nunca mais serei feliz. Urgente e substancial, voltar a viver, quando sair daqui. Retomar meu caminho de onde parei e, de alguma forma, de alguma maneira ainda não tombada diante de meus esbugalhos, esposar novas estradas. Em frente. Sem olhar para trás. É imenso o vazio que sangra nas lágrimas do meu eu interior. Maior ainda, os medos e receios que pulverizam meu peito em frangalhos. Um corte profundo se abriu nos valados sombrios do meu consternado. Não encontro medicação para estancar a dor que me dilacera. Me transformei num espectro viajor sem curso sólido e durável. As pessoas, ao me olharem, sentem pavor do molambo em que me descompus.

E pensar que ainda a pouco, a felicidade completa, cheia, estava ali. Meu Deus! Tão próxima. Tão entrelaçada, tão em mim, tão em nós, tão pujante... e clara! Todavia, eu cego pelas coisas do cotidiano, enleado pelos afazeres, confuso em derredor dos compromissos, abalado pelas correrias, não a vi. Um milésimo de segundo sequer a enxerguei, aturdido pelo baque que subjugou a todos os familiares sem prévio aviso. Nesse fardo estorvante, longe das vaidades alheias, enquanto se erguem entre você e eu, as colunas do nunca mais, nitidamente percebo que não há mais volta. Dou conta de que, com seu desviver, fiquei órfão de tudo, sem retorno e sem opções. Resta acumular perdas e desilusões, fracassos e chagas. Espere! Ainda posso fazer uso de uma reversão na qual não pensara. Há uma luz lampejando, solta e imanente, no fim da minha perplexidade. O pávido, às vezes, nos leva a descortinar sendas e trilhas impolutas e não carreadas.

Em amparo, em apoio, me acode o pedir desculpas a você, enquanto o rio dos meus sentimentos segue seu leito, e a vigília do seu corpo dorme marmóreo num remoinho infindo. Rogar, humilde, pela absolvição dos meus deslizes, pecados, desacertos, lapsos e negligencias. Só me resta isso. Rogar, pedir, implorar. Inválido eu me sinto, assim como entanguido e mirrado. Sei disso. Você também tem consciência. Ainda que fracasse, mister tentar. Levo em conta seu coração magnânimo e generoso, longânime e complacente. Agarrado a ele, como um sobrevivente atarantado à tabua da derradeira salvação, preso a nobreza da sua simplicidade suplico que me perdoe por todos meus desatinos e desfalques, torpezas e imprudências.

Me perdoa pelos carinhos que não expressei, pelos afetos e meiguices que não quis permutar. Igualmente me perdoa pelas horas que deixei você sozinha, desacompanhada, abandonada aos reveses do isolamento. Igual absolvição pelas raivas que lhe impus, pelos problemas que trouxe ao seu local de sossego. Tardiamente compreendi, deveriam, esses breves comenos, ser os nossos melhores instantes de paz na bucólica tranquilidade que norteava a sua flama. Por essa razão, no abatimento da existência imprópria, maldigo tudo o que deixei de fazer por você quando estava aqui. Em razão disso, deixo com meu “até breve”, não o adeus definitivo, somente as mágoas e os dissabores que juntei em malgrados cutelos.

Releva, pois, pela remissão, os beijos que não lhe dei, pelas horas que lhe virei às costas e não me despedi. Perdoa pelos telefonemas que não levei a efeito para saber se estava bem, se precisava de alguma coisa, se faltava seu remédio imprescindível. Perdoa de igual forma, pelos motivos benfazejos que me aconteceram e simplesmente me esqueci de lhe contar. Nesses anos todos, pouco participei do seu anfêmero, do seu diurnal. Eu sabia (dentro de mim, eu sabia) você fenderia as intempéries da vida e deixaria à mostra do meu estupefato, um elo imensurável e intransponível. E ele agora, acredite me persegue.

Eu sabia, mas me negava a levar em conta. Tinha conhecimento, porém, não lhe irrogava a seriedade devida. A gente só dá madureza e o valor condigno às pequenas insignificâncias, as ínfimas bobeiras, ao corriqueiro, ao banal, quando o enfático do incogitado nos fustiga e se apresenta impessoal, decretando a sua morbidez percuciente. Sequer me dispus e, de fato, jamais me prescrevi a pensar, a imaginar, a cogitar, que, a qualquer hora, o azar bateria à minha porta. De repente, como um agônico estrangeiro vindo de longe, ser fugaz, o infame, enfim, bateu. O prestes fatal, ominoso, drástico, premente, o insanável e sem conserto, bateu, e não só bateu, entrou, se funestou, agourento, aterrador e imperioso. Literalmente forçoso e altaneiro. Sem maiores explicações, lhe roubou de mim.

Num piscar quase imperceptível, quando me deparei com a realidade súbita, cúspide, bem ali, me castigando, me esmagando, me batendo na cara, me peguei vencido, aniquilado, deprimido, derrotado, pálido, descorado, esvaecido, às vísceras de todas as desgraças expostas a firmamento declarado. Nesse nada que me cerca, degenerado aborto que me asfixia, ergo como zumbi, um brinde às sepulturas e jazigos de um campo santo que até então (olhe em volta...) não aparecia no meu desvaire. Maldigo a hora em que me tornei adulto e parti para o mundo sem entendimento à vida. Da sinfonia malograda que se fez corrente, em paroxismo me lancei num abismo apocalíptico e sucumbi no vórtice do meu próprio estiolamento.

Em meio a esse algo em mim que se mortifica como poalha emporcalhada que me crucia, eu queria voltar no tempo. Aquele efêmero decurso pastoril em que você me levava no hall do elevador. E antes da porta se fechar, sentir o frescor dos beijos ternos que me depositava no rosto. Queria mais. A sua benção, o ouvir da sua voz maviosa, a repetitividade dos “eu te amo” serenos e emulativos. Voltar às carreiras, meus passos passados à quadra em que ficava lá embaixo, em pé, no ponto de ônibus, sonhando panegíricos para gritar em seu louvor pelo fato de ver você na varanda, me dando tchau. Isso me leva a concluir que somos feitos do que nos escapa à percepção. Quando vem à lembrança, aflora lá de dentro, o que deveria ser feito com regularidade ímpar.

Da sua silhueta delicada, sutil, inverossímil, forma quase ausente e impalpável, no alpendre, não mais sorrisos. Não mais elipses de felicidades, não mais alegrias e ósculos atirados ao sabor do vento. Brilham no hirto da amplidão, martírios e afogos, consternações e transes. A compridez da sacada, a tarde como uma alimária, em resumo, o complexo se fez desabitado, ocioso, abandonado. O calor abrasante que eu sentia dentro do escondido em festa, se fez friamente áspero e rude, intratável e abstruso, como se tivesse me detergido por dentro. Morreu um pouco de mim com o seu desabrochar para os confins do desconhecido. A cada novo porvir, fenecerá um pouco da matéria espúria que nesse patamar me escorava a solidão plangente.

Como a me recordar infinitamente o dia do adeus que nesta hora se inicia, no espelho vítreo das minhas faculdades afetivas, algo veio de um distante apartado, insulado e endureceu a febra que me encorajava. Embargou o sangue, acanhou os horizontes que ainda nem pensavam em nascer na manhã convizinha. Uma escuridão insana, demente, exaustiva, petrificou o isolado dos meus dias e, agora, o meu “hoje”, qual filho adotivo, vaga sem rumo, sem destino, sem porto seguro, inseguro, instável, vacilante, langoroso dentro do luto exacerbado que ficou no ar, com o seu desenlace. Apesar disso, você não perimirá. Concrescente em linhas imaginárias em rota certa aos aconchegos do Pai, preluzirá como astro de primeira grandeza. E em particular, distinto e privado, você será meu imorredouro sonho aunado em trajetória a um leque de mil galhardias que ainda estão por acontecer.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do sítio “Shangri-la”, um lugar perdido no meio do nada.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 11/05/2018
Código do texto: T6333789
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