EU SOU O UNIVERSAL - Crônicas d'Anteontem
EU SOU O UNIVERSAL - Crônicas d'Anteontem
Digo e repito: Após dois mil anos o Deus cristão envelheceu. E sou humilde o bastante para admitir que tal constatação sequer é minha, mas do poeta Guerra Junqueira, ainda nas brumas do novecentos. Aliás, preferiria fazer dessa crônica uma releitura honesta dos poemas de Guerra, o que provavelmente enriqueceria o leitor. Contudo, forçado a destrinchar esse Credo às avessas que proferi recentemente, premio o leitor com algumas páginas de reflexão enmimesmada sob o olhar raivoso de crentes e a esguelha desconfiada de não-crentes. Não que eu não acredite em Deus -- o cristão ou outro. Ao contrário, torço para que exista. Admito que muito me conforta ser grato a esse amigo talvez imaginário quando algo dá certo e poder evocá-lo em meu favor quando dá errado, mas é preciso admitir que a ideia do Deus uno-e-trino da doutrina cristã parece ter se desgastado a ponto de não fazer mais sentido na intelectualidade ocidental. E a culpa, mais do que da secularização da sociedade, é sobretudo das instituições religiosas que se denominam cristãs. Religião já teve a função de moralizar os costumes e dar um sentido maior para a existência humana. Hoje em dia, parece apenas um esforço pragmático por poder, seja econômico; seja político. Incapazes de olhar para as contradições da própria doutrina quando confrontada com os conflitos e emergências da pós-modernidade, religiosos simplesmente se esquivam de pensar.
Mas, e daí? Bem, eu tenho andado obcecado faz alguns anos pela ideia de "ordem social". Sim, aquela irmã do "mercado" smithiniano cuja mão invisível nos oferta, dia após dia, víveres bem diante de nossos narizes sem que uma grande e complexa estrutura estatal actue nos bastidores da coisa. Irmã bastarda, reconheço, visto que falem tão pouco d'ela, a ordem social sintetiza uma ideia ainda mais impressionante, a saber, como milhões de seres humanos convivendo face a face na exíguo espaço d'uma mesma cidade conseguem não se trucidar. Se não convencem boas intenções ou livros de autoajuda, tampouco vão adiantar visões positivas sobre a índole (o coisa que o valha) d'esse animal excepcional que é o homem em sociedade. Para a compreensão de tal fenômeno urbano, é possível se perceber duas grandes fontes de normatizações pré-modernas que estabeleceram os parâmetros para uma "cultura da ordem social": O poder secular e o poder temporal. N'outras palavras, diante dos conflitos e injustiças do dia a dia (que incluem a convivência muito próxima de fome, miséria e ignorância com luxo, opulência e expertise), as regras que são incutidas nos corações e mentes das pessoas evocam "Poderes Maiores" capazes de punir quem decide sair da linha. Com efeito, se todo injustiçado decidisse responder com violência ao querelante, teríamos banhos de sangue nas ruas, não automóveis.
O Estado pune o violento e, se este falhar, Deus punirá. Bem, ao menos essa era a lógica do sistema: Seguir as regras para que todos consigam conviver ainda que ofendidos e incomodados pelas impertinências do próximo. A ordem social, portanto, é baseada no temor ao Estado e no amor a Deus. Seguimos as regras para evitar sermos submetidos pelo "monopólio da violência" que o Estado com suas forças armadas e policiais impõe e procuramos "agradar a Deus" (ou, para além da tradição ocidental, os deuses) na esperança que repetidos sacrifícios, orações e ritos O sensibilizem para nossa condição de seres humanos. Em larga medida, tudo o que fazemos para viver em sociedade depende de regras definidas pelos poderes estabelecidos pela colectividade, neste mundo e no outro.
O problema é que não parece ser o bastante, haja vista que a felicidade e o sucesso pessoal parecem independer do seguimento honesto de tais regras. E, sendo a sociedade um agrupamento de indivíduos focados em suas necessidade e vontades, a ideia de sacrificar o próprio bem-estar ou sanidade em nome do bem comum (nos termos do que as autoridades assim o consideram) soa simplesmente absurda para as pessoas hoje em dia. O Deus de Jesus Cristo, após acompanhar e abençoar a progressiva expansão dos valores culturais -- a ferro, fogo e vil metal -- do Ocidente mundo afora, chega ao terceiro milênio envelhecido, quase senil. Escrevo não para causar espécie (não apenas, ao menos), mas sim para admitir que mesmo que Sua importância no imaginário colectivo ainda seja perceptível, ninguém mais em sã consciência tem medo de ir para o Inferno bíblico. Por outro lado, se a esperança do Céu ou do Paraíso persistem, ninguém parece estar disposto a fazer muito mais que confiar no amor de Deus para se safar do julgamento de seus hábitos, actos, palavras e pensamentos. Mesmo os ortodoxos -- que, admitamos, são uma minoria quase folclórica -- não resistem ao cinismo para confrontar suas crenças religiosas com as práticas da sociedade secularizada.
Se a velhice de Deus é resultado de dois mil anos de espera na conclusão do cumprimento das Escrituras com a Encarnação do Verbo Divino em Jesus Cristo, Sua senilidade é percebida com a incoerência d'aqueles que exigem Sua presença no mundo, via de regra, por meio das armas e do dinheiro. O que assistimos no mundo, sobretudo a partir de dois mil e um, não é uma odisseia no espaço, sim uma guerra contra o terror. Religiosos ressentidos com a secularização da sociedade decidiram aterrorizá-la ao invés de revisar sua doutrina e e dialogar com não-crentes. Saliente-se, porém, que o fundamentalismo não é um privilégio de muçulmanos, mas ainda um movimento reaccionário também perceptível em grupos de orientação judaico-cristãos, cuja resposta para qualquer questão contemporânea ainda é restrita aos seus livros sagrados. Mais uma vez na História, em nome de Deus, religiosos apresentam um projeto de poder e se organizam para nos governar com o discurso de que são sumamente honestos diante d'um sistema político-estatal corrompido. Não explodem bombas (ainda...), mas perseguem com violência as religiões afro-brasileiras e o catolicismo sincrético, além de abençoar veladamente a barbárie contra minorias LGBT.
Definitivamente, os religiosos do terceiro milênio não são santos! Longe d'isso: São empresários do entretenimento e do jornalismo que mergulham a opinião publica n'uma sensação de urgência constante e artificial. No império das certezas, há pouco ou nenhum lugar para a reflexão, apenas para a acção. Seus jornais, filmes, telenovelas e mesmo propagandas manifestam esse contínuo empoderamento para enfrentar o mundo.
E Deus, se existir, está vendo isso tudo, velho e senil...