O crivo das escolhas

Ocorrência comum era sentarmos numa roda ao pé do fogo em casa de um ou de outro parente, que por ocasião das visitas ficavam de pernoite, porque naquele tempo pouca distância era muita, devido à falta de condução ou às más condições dos caminhos. Eram aqueles, momentos de troca de notícias, quando se inteirava dos novos nascimentos e dos futuros enlaces. Conjecturava-se acontecimentos e previa-se desfechos. Batata doce sob o braseiro, ou milho de pipoca que, ao estourar, atirava o petisco à mão mais ágil, quando não provocava um bombardeio de flocos brancos e uma algazarra alegre para descontrair o clima tenso ocasionado por alguma nova não muito boa.

Um bolo de coalhada assado em panela de ferro tampada com um prato esmaltado cheio de brasas. Também isso acontecia vez ou outra, o que era inconcebível que não fosse acompanhado de café fresco. Lembro a fatia fumegante, o amarelo vivo do fubá de moinho d’água e a rapa escura do contato com o metal superaquecido. Os cheiros de todas essas coisas são notas de nostalgia capazes de evocar as melhores lembranças da vida.

No marasmo das tardes um som conhecido soava ainda distante deixando a garotada em alvoroço a recolher moedinhas. Era a buzina do padeiro Bejo, que passava com sua carroça a oferecer pão fresco. Parava em um ponto da Rua da Várzea, próximo de nossa casa, as pessoas surgiam de todos os lados. A carroça tinha uma um baú de lata de teto abaulado, pintado de cinza médio, um banquinho na parte dianteira, resguardado por um puxadinho sobressaliente do teto, donde pendia a buzina. Bejo saltava desse banquinho e abria as portas traseiras para exibir a sua mercadoria à clientela. Era de encher os olhos os tabuleiros de broas, tarecos, roscas, biscoitos e pães variados.

A geleia de mocotó produzida pelo Zé Margarida, o pudim da São do Osmar, o pastel do Cabode e tantas outras guloseimas, muitas delas só feitas por encomenda, eram produtos ímpares. Quem não os conheceu naquele tempo perdeu sua vez.

Em casa, a mãe improvisava um fubá suado, uma mentira, um bolinho de chuva. Na venda se comprava a granel as bolachas Maria, cujo gosto nunca mais pude sentir. Penso que talvez seja por falta do ingrediente mais comum naquele tempo, a escassez. O fastio é o componente que torna os alimentos insossos. O prazer de todos os sentidos passa por essa corrosão inevitável. O que se deseja é sempre o que não se tem.

A dificuldade sempre provocou a inventividade. Para se conservar a carne, por exemplo, sem os recursos de que dispomos hoje usava-se técnicas antigas. Ela era salgada e desidratada ao sol, o que dava-lhe um sabor muito especial, creia, diferente mesmo das carnes de sol que se prova hoje, ou era cozida e conservada na gordura, em grandes latas. Nacos suculentos se desfiando nos pratos saborosos, compostos de produtos saudáveis, produzidos ali mesmo debaixo das vistas, na horta do quintal, próprio ou dos vizinhos dadivosos, recíprocos, irmanados no profícuo sistema de escambo, tão próprio das pequenas comunidades.

É claro que cada tempo tem sua parcela de coisas boas e ruins e a felicidade consiste em possuir o crivo certo para se fazer as melhores escolhas.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 08/05/2018
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