Gabriel, onde estas?
Gabriel, onde estas?
Delasnieve Daspet
Ele chegou assim... de repente. Um guri franzino, esperto, inteligente, carente, como são todos os que não tem o conforto de uma família.
Danado que só – o Gabriel! Cheio de todas as malandragens que a rua ensina. E, ele tinha somente 7 ( sete) anos.
Chamou atenção com rapidez. Quiçá pela desenvoltura, quiçá pelo jeito malemolente, quiçá pela constante busca de apoio e amor, que afirmava não precisar.
- Onde andam teus pais, Gabriel? Perguntei um dia...
- Ah! Por ai... meu pai esta preso e minha mãe é drogada. Dela, não sei!
Estabeleceu-se entre nós um grande carinho. Tenho um fraco por guris danados. Nunca esqueci os nomes dos meus alunos que deram mais trabalho... Outro dia encontrei um deles – era um dos gerentes no banco onde sou correntista.
Mas o Gabriel foi ficando... Na ausência dos pais quem cuidava dele era uma tia. Todo o Gabriel era um pedido de carinho, de atenção, de amor. Brigava com todos; comia lanche dos outros; quebrava o lápis do colega; levava as borrachas; tomava os brinquedos...
Estava duro “ domar” aquela ferinha. A professora me chamou:
“ Doutora – não tem condições – ele coloca a perder os outros...”
Esqueci de dizer que presido uma instituição de caridade onde cuidamos em torno de até 70 ( setenta ) crianças. Nos lhes damos acompanhamento escolar, refeições, atendimento psicológico, até médico, se for necessário e possível.
Respondi a professora: “ tem de existir algo que possamos fazer...”
Um dia a professora precisou faltar e fui “ cubrir” o tempo da mesma... Tanto tempo fora de uma classe...olhei naqueles meninos e pensei o que serão amanhã?
Pronto! Achei o que iríamos fazer naquela manhã. Uma redação. Primeiro expliquei o que viria a ser uma redação. Daí, passamos para o tema: “ o que quero ser quando crescer...”
Do que os outros disseram não me recordo muito bem... numa classe de 35 alunos tem as mais variadas escolhas e desejos. Fixei-me naquele guri... o que ele gostaria de ser?
Ele encostou-se na minha mesa e me pediu: “ a senhora me ajuda? Eu não sei escrever ainda, mas sei o que quero ser!”
Claro – eu precisava saber o que Gabriel queria ser!
“Vamos lá – eu te ajudo”, respondi.
Só não caí da cadeira porque estava sentada... a resposta do Gabriel foi como um “tapa na cara”. Um tapa pelos descalabros da nossa política de integração, de inclusão, de se cuidar dos pequenos, melhor dizendo – da falta de uma política séria para esses assuntos.
“Fessora, escreve aí – que eu quero ser bandido. Quero ter dinheiro. Mulher bonita. Aparecer na TV. Andar de “licótero”...”
O menino queria ser bandido!
Mas claro!... Nessa transvaloração em que vivemos – onde se valoriza muito o mal feito – onde em cada dez notícias que lemos/vemos nove e meio referem-se a algum tipo de violência, algum desvio, alguma corrupção... Os “ grandes bandidos “ passeiam pelo pais em condução exclusiva... e, por aí vai!
Em quase todos os refletores da mídia são para os beira-mares e abadias da vida... enquanto não houver punições para os políticos safados que infestam nossa brasilis verde-amarelo, existirão crianças sonhando em serem bandidas!
O que eu podia esperar, afinal, de um menino largado, como são largados os nossos velhos... o ontem e o amanhã estão a deriva. E o hoje, sabemos que, também, estão sem apoio!
É... realmente a liga com Gabriel teria de ter outro caminho... Procurei outra forma de chamar-lhe a atenção... Ele me perguntou como era ser advogada e professora... “Taí!!”
Ele mesmo deu-me a deixa! Fiz-lhe um convite naquela hora:
“Gabriel – você gostaria de um dia vir a ser meu colega de escritório? – Você tem de estudar muito , sempre. O que achas ? “
Nem de longe imaginava o que viria a seguir...
A transformação foi completa. Tornou-se um menino estudioso. Aprumado, limpo, gentil, já não atazanava tanto os colegas, e me dizia:
“ Me espera, professora, vou trabalhar com a senhora, vou ser doutor...”
O resto do ano transcorreu na maior paz. Com alegria observava a construção daquele pequeno ser. Aquele ano findou. Meu menino já lia e sabia a tabuada de somar.
Nas férias fui informada que o Conselho Tutelar fora buscar o Gabriel e ele deu meu nome. Fui até lá. A tia não suportava mais o menino e queria entregar-me pois somente a mim obedecia, ela disse. Conversamos e aparentemente tudo ficou normal.
Mas no outro ano o Gabriel não apareceu. Fomos à casa dele e ficamos sabendo que o pai dele tinha saído da prisão, e, que ele fora morar com o mesmo.
Procurei saber para onde fora... Ninguém sabe, ninguém da noticia.
Fico angustiada – será que perdi para as mal-querenças da vida um brilhante futuro colega de escritório?!
Precisamos ajudar os Gabriels perdidos na selva imensa da vida.
Ninguém sobrevive sozinho... chega um momento em que a angústia e a solidão não darão tréguas e exigirão companhia... É a lei da vida!
Precisamos redescobrir e doar a esses meninos a gratuidade do amor.
Alguém que não tem experiência de um convívio familiar onde todos se ergam no apoio mútuo, que não tem a vibração necessária por uma vitória, onde todos sofram numa dor, onde haja o companheirismo, não saberá o que perdeu – porque nunca teve!
E a segurança vai definhando...
O amor não é utopia, ele se alimenta do dia a dia, e, isso torna a vida possível!
Gabriel, meu menino! Não deixe que a criminalidade te adote. E se alguém te disser que estou te procurando – retorne! A mestra te chama, volte! Conclua teus estudos. Venha assumir o escritório, como combinamos!
Se alguém vir na rua um guri franzino, serelepe, cabelos molinha, com mais ou menos oito para nove anos, olhar de fogo triste e brilhante, traquina, me avise – vou busca-lo!
31.08.07 – Campo Grande MS