PREGÕES
“Dez horas da noite/ Na rua deserta/ A preta mercando/ Parece um lamento/ Ê o abará...”
A PRETA DO ACARAJÉ – letra e música de
Dorival Caymmi
Durante o período da escravidão, principalmente nos últimos anos, por conta do empobrecimento generalizado da população motivado pelos empréstimos feitos pela coroa para fazer face aos gastos com a guerra do Paraguay, a retração no comércio mundial dos produtos agrícolas brasileiros e o crescimento populacional nas cidades deu-se o fenômeno dos “pretos de ganho”.
Essas pessoas trabalhavam nas ruas com o objetivo de juntar dinheiro para comprar a alforria própria ou de parentes e os que por ordem dos seus proprietários, carentes de algum rendimento, vendiam produtos em locais fixos ou como ambulantes apregoando pelas ruas.
Outros eram alugados para fazer os serviços nas casas daqueles que não tinham dinheiro bastante para comprar e manter escravos.
Eram diaristas na atual nomenclatura das profissões.
A maioria, se não a unanimidade, desses pretos era analfabeta, porque não havia nenhum interesse que eles fossem alfabetizados em português (para não falsificarem as cartas de alforria) e também porque não existe alfabeto próprio nas línguas de suas etnias africanas de origens.
(Etnias trazidas para o Brasil: Bantos, Minas, Nagôs, Malês. Guiné, Jejes, etc. Desses povos, os que falavam a língua haúça utilizaram o alfabeto árabe)
Veio a abolição da escravatura, mas o costume das vendas por ambulantes permaneceu, principalmente porque os libertados por decreto foram tangidos das casas dos seus antigos donos e abandonados na indigência, sem recursos, sem instrução, sem local para morar, sem ajuda ou orientação oficial para a sua total integração à sociedade até mesmo por aqueles que, por pura hipocrisia, se diziam indignados com o fato de ser o Brasil o único país ocidental a ter a sua economia, predominantemente agrícola, baseada na mão de obra escrava.
O costume de vendedores, pretos ou não, apregoando as qualidades das suas mercadorias permaneceu ativo até a segunda metade do século passado.
Nos bairros mais afastados era comum ouvirem-se esses ambulantes a fim de que a dona de casa não precisasse ir até o centro da cidade para fazer compras.
Com a implantação das indústrias, o aumento dos índices de alfabetização, o comércio de bens de consumo por mercadinhos e super mercados nos bairros, aumento do poder aquisitivo da população e pela dinâmica da economia (mesmo considerando que a sua instabilidade já foi comparada ao vôo de galinha, desorientado e curto) os ambulantes perderam o espaço, pelo menos nos maiores centros.
Para desespero dos “vermelhos” vivemos no regime capitalista e como nossos governantes, desde sempre, governam para o próprio bem e de seus comparsas, as políticas de livre comércio, assistência social, saúde, educação, segurança pública, justiça, distribuição de renda, etc. são risíveis ou inexistentes apesar dos impostos escorchantes (lindo esse adjetivo) embutidos em todos os bens e serviços.
Estudos revelam que os impostos no Brasil consomem 165 dias do salário anual.
Talvez por isso a frequência de ambulantes em nossa rua tem aumentado a ponto de vendedores de determinado produto se cruzarem a qualquer hora do dia.
Claro que aqueles pregões melodiosos que eu ouvia na infância e adolescência* já foram substituídos pelas gravações no melhor estilo Silvio Santos, as carrocinhas ou tabuleiros e os animais de carga foram trocados por veículos, sendo alguns velhos, mas a maioria é nova e os ambulantes analfabetos de antigamente foram trocados por psicólogos, advogados, engenheiros, arquitetos, professores que perderam seus empregos ou que acabaram de sair das faculdades e estão no final da fila dos mais de catorze milhões de desempregados.
A qualquer hora do dia ou da noite podemos ouvir:
- São churros feitos na hora macios, fresquinhos e crocantes com recheio de leite condensado e chocolate colorido...
- Olha a pizza de dez, olha a pizza de dez, olha a pizza de dez...
- É dez, é dez, é dez ovos fresquinhos diretamente da granja;
Trinta ovos graúdos por apenas dez reais, as galinhas ficaram malucas e o patrão mandou vender barato, eu falei trinta ovos dez reais;
É trinta, é trinta, é trinta ovos por dez reais;
Está passando na sua rua, o carro do ovo, são trinta ovos de qualidade;
Olha o carro do abençoado, ovos novos por apenas dez reais, são trinta ovos dez reais;
Venha conferir minha senhora, são quarenta ovos por dez reais;
Ovos diretamente da granja, por apenas dez reais, vamos chegando dona de casa, porque tem outras freguesias esperando pelo carro do ovo...
- Quebra queixo, um é três dois é cinco (entre as falas, faz soar o ti li lim do triângulo de ferro)...
- Pamonhas, pamonhas, pamonhas. Pamonhas fresquinhas, pamonhas caseira. É o puro creme do milho verde, temos curau e pamonhas. Venha provar minha senhora é uma delícia. Pamonhas, pamonhas, pamonhas...
- Água de lavadeira e pasta de brilho...
- Rodo, vassoura e pá, é o conjunto de limpeza por apenas dez reais...
- É queijo, é queijo, é queijo, tem linguiça caseira, queijo e doce de leite diretamente da Canastra...
- Amolo alicate de unha, faca, facão, tesoura. Amolo qualquer ferramenta...
- Tapete para sala e quarto de dormir de todos os tamanhos, venha conferir...
- Olha a maçã do amor, freguesa...
- Pano de prato, esfregão, pano de limpeza, vai querer?...
- Olha o cobertor pelo melhor preço, colcha de solteiro e de casal...
- Conjunto para banheiro liso e estampado...
- Rede do Ceará tecida a mão. É de puro algodão...
- Cadeira de balanço para a varanda. Tem para adulto e criança...
- Sofá e poltrona diretamente da fábrica. Recebemos seu móvel usado como parte do pagamento...
- Colchão de mola D33 para cama de casal, solteiro e criança diretamente de Sorocaba pelo menor preço do Estado...
- Mangueira para limpeza com cinco e com dez “metro”...
- Panelas de alumínio da melhor qualidade. Tem panela de pressão e leiteira. Venha conferir minha senhora...
- Yakult, Yakult...
- Pão caseiro feito pelas irmãs da paróquia de São Geraldo Magela...
- Terra adubada e jarro para planta...
- Dois “abacaxi” Pérola por cinco, duas “dúzia” de banana por cinco, caqui, uva diretamente de Goiás, saco de laranja é cinco. Tem batata doce e inhame...
- O carro da laranja chegou...
Bem antes do nascer do sol e à noite, pães doces e de sal em diversos formatos são transportados por motociclistas que se anunciam com buzina do tipo Chacrinha e, diariamente, aquele som macabro do carro do gás.
Os fenômenos sociais com pequenas ou grandes variações costumam se repetir.
Espero que a escravidão esteja bem distante...
GLOSSÁRIO:
Curau = o mesmo que canjica, para os Nordestinos.
Água de lavadeira = água sanitária
*Sugiro a leitura da crônica Pregões do Recife publicada no Recanto em 16/12/2012 www.recantodasletras.com.br/cronicas/4038546