Você é feliz?

Desejamos e queremos a tal felicidade? É uma pergunta que se não causa espanto e estranheza, afugentando-nos, minimamente nos causa certos incômodos. É um assunto que parece exigir uma boa justificativa para responder. Nos tempos modernos de hoje inventaram o reino da felicidade, não deveríamos agir naturalmente diante da felicidade? – Nós, doentes felizes, forçamo-nos à felicidade!

As pessoas podem se sentir embaraçadas e constrangidas para responder a pergunta porque malogradas estão com a vida, uma vida que os ideais liberais, científicos e progressistas esterilizaram de suas condições intrínsecas de dor e sofrimento, fazendo com que os desprazeres da existência sejam experienciados como responsabilidades daquele que sofre, portanto, o incapaz por vontade própria deve arcar com o peso de contrariar a ordem social de felicidade. Ora, a felicidade é uma escolha que todos podem fazer, e não há como não ser feliz diante de tantas ofertas e opções que o progresso tem a oferecer: deves ser feliz – eis o mandamento único da religião do progresso técnico-científico.

Ficamos com essa ideia embaraçada pode vir ainda porque o homem ou a mulher que por hábito se esforça para mostrar-se como feliz – mostrar-se com dentes brancos e alinhados para assim ter sorriso, comunicativo e assertivo porque seus empregos e a sociedade exigem artificialidade –, sabe que ele não é feliz: não se engana uma existência, o que se vivencia, daquilo que se pode falar e forçar para mostrar. Os afetos diante da vida não mudam com simples educação semântica e comportamental.

Entre tantas outras disposições que se deve estar atento para não ser flagrado como alguém infeliz, a esperança é o limite, com a esperança o homem feliz é batizado para o deves ter pensamentos positivos para que tudo de bom lhe aconteça: eis aí um homem com potencial para ser convencido de que toda desgraça e miséria que possa vivenciar seja unicamente por sua própria responsabilidade.

Diante dessas breves e limitadas considerações sobre um tema que é muito astuto e sedutor para degradar o real, e que no bojo de seus efeitos colaterais dissipa o niilismo, um filme ensaio que não faz uma crítica à felicidade em si, pelo menos de uma perspectiva genealógica, retrata muito bem o embaraço e o constrangimento de homens e mulheres diante da virginal pergunta Você é feliz? Como você vive? – Mote que servirá como estrela polar para Edgar Morin e Jean Rouch, na década de 60, produzir uma obra de cinema em carne e osso.

Produzido dentro das concepções antropológicas que sustentam o gênero do cinema verdade, esse ensaio só pode ter como fundo a vida cotidiana em suas condições materiais e espirituais concretas no tempo. Morin e Rouch interpelam diretamente alguns jovens parisienses, adultos, estudantes e operários, e até mesmo crianças, a falarem sobre suas condições de vida.

Invadindo a intimidade com o Você é feliz? Naturalmente se levanta uma série de vivências individuais de tédio, desespero, solidão, melancolia, lembranças que ardem e também as condições coletivas e históricas, a política, a guerra da Argélia e os conflitos com o Congo que faziam parte do clima francês naquele momento, o niilismo de que eram responsabilizados principalmente os jovens numa França onde as discussões sobre a ação eram intensas, além das condições de trabalho que vinham a tona não como coadjuvante, mas como o principal elemento de reflexão sobre a felicidade.

Ora, como ser feliz diante de uma vida que exige uma luta diária e constante, onde o esgotamento é o limite prorrogado a cada manhã que nasce em uma trégua sem fim para sobreviver minimamente? O que resta ao homem que após longas horas de trabalho durante 5 ou 6 dias da semana, quando não a semana inteira, retorna no fim do dia ao seu lar?

Corpos e mentes presos à rotina repetitiva de suas tarefas se esgotam nos árduos turnos de trabalho, retornam aos seus lares para se alimentar e descansar, e se puder se contentam com um fim de semana ou apenas um dia de domingo gasto para tentar repor as energias que são esgotadas desproporcionalmente: o que restou a esse homem? Quem ele é? Que momento ele tem para refletir e pensar sobre si mesmo e o mundo a sua volta?

Passados 50 anos desde a produção, se não podemos dizer que o filme é atual, é porque nesse período curto de tempo estamos mais infelizes e mais conformados com nosso ser como peças de reposição em um mundo cientificado, robotizado e tecnologizado que não tem espaço para outras possibilidades senão o seguimento de um itinerário estabelecido como ordem mundial não só de nossas vidas mas também do mundo com todos os seus possíveis, e que no limite não é outra senão a busca pelo lucro que se revela como uma alegoria para um “agora tudo me é possível”. Não é por menos que a maioria das pessoas identifica a felicidade como uma consequência possível somente no extremo da riqueza.

É cada vez menos provável a abertura do homem para refletir sobre as condições em que se vive e de como o mundo vai sendo recriado quando estamos por demais convencidos de que é próprio da natureza e ordem natural das coisas seguir a rotina que aprendemos quando somos lançado ao mundo: pragmáticos, utilitaristas e bons cristãos, compõem o emplastro com que nos banhamos. Talvez seja perfeitamente possível que homens e mulheres lançados nessa bola que gira num espaço rodeado de astros solitários e misteriosos, que chamamos de planeta Terra, morram sem nunca terem se dado conta disso senão das paredes, tetos e objetos que povoaram suas vidas antes de perderem seus prazos de validades e serem expirados.

Se em nossos tempos tivermos a ousadia de dirigir ao outro um Você é feliz, pode ser que sejamos insultados por incomodá-lo, e talvez não conseguiremos ir muito mais além do que o nosso “instinto” mais usual: está tudo bem!

Em Crônica de um verão os diretores não deram oportunidade para os atores serem atores, eles são “pegos” no próprio seio da vida, o que fica evidente desde os primeiros minutos do filme através dos embaraços e incômodos presentes nas relações humanas, que representam aquilo que têm de mais natural nos encontros intersubjetivos, embora nos esforçamos para ser sempre o que não somos.

O que estamos fazendo de nossas vidas? – Michel Foucault

-Alguns tem que se adaptar… Quem for totalmente adaptável é sortudo. Eu comecei um campo de batalha mental… Parte de mim se adapta, o resto não.

– E o que acontece com o resto?– Bem, eu não atenho isso intacto… Ou melhor, eu assisto cuidadosamente isso.

– E o que é isso?

– Meu eu. Eu penso na tragédia dos nossos tempos…

– É tão difícil cada um escolher seu emprego?

– Você não seleciona – você cai dentro dele. Eu tenho que ir…se não for um degrau… Pelo menos um trabalho…oficialmente empregado. Caso contrário, sem papéis sem trabalho permitido. Um homem hoje…O que é um homem hoje? Um cartão de identidade…um conjunto de formulários. Esse é o homem de hoje, não é? Nem todo mundo é artista…ou até mesmo um artesão! Agora…nós somos máquinas… Combatendo o tédio de um trabalho maçante. Sem interesse ou finalidade… Ainda assim, obviamente o trabalho tem que ser feito. Deve durar até 6 horas. Depois das 6 você tenta se descobrir. Se tornar outro homem… outra pessoa. Ele está vivo, é sério! Mas ele continua um prisioneiro… O homem trabalhador usa algemas. Lentamente, vai se envolvendo com o trabalho… que deveria ser reduzido ao seu favor… É O que eu chamo de “a vida marginal”.

– Existe alguma coisa em que você acredita?

– Eu acredito na vida…Eu acredito… Na possibilidade do cumprimento… Apesar de tudo.

Jova
Enviado por Jova em 04/05/2018
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