PAÇOQUINHA COM GUARANÁ

PAÇOQUINHA COM GUARANÁ.

“Os primeiros 40 anos de vida nos dão o texto; os 30 seguintes fornecem o comentário sobre ele.”

Arthur Schopenhauer

Inevitavelmente, à medida que envelhecemos possuímos mais tempo livre do que quando moços. Podemos pensar e relembrar fatos e experiências que vivemos. Recordações tornam-se uma presença constante e ajudam muito a entender como fomos “construídos” e quem nos tornamos. Nem sempre interpretamos corretamente, pois nosso julgamento é feito e influenciado por esse mesmo conjunto de fatores que tentamos analisar. Mas existem marcas que adquirimos quando crianças que ficam, por mais sem sentido que sejam, indelevelmente gravadas. Essa é a história de uma dessas banalidades que carrego desde pequeno.

Quem vai à Praia Grande atualmente, em sentido à Fortaleza de Itaipu, utilizando uma avenida com duas pistas asfaltadas, ao retornar passa em frente ao Supermercado Figuerôa. A família hoje conta com descendentes em toda Baixada Santista, advogados, fisioterapeutas, etc. Para mim, é um nome com sabor de infância. Sabor de paçoquinha de amendoim com guaraná.

Devido à aposentadoria de meu pai, voltamos de Santo Ângelo em 1955. Meu avô também havia se aposentado e construído um bangalô na antiga vila Nogueira, hoje Canto do Forte. Era uma edificação de madeira, pintada de verde escuro, com uma boa varanda, bem confortável. Provisoriamente, ficamos na casa de meus avós enquanto meu pai buscava alugar casa em Santos ou São Vicente. Imediatamente fui matriculado no terceiro ano primário em uma escola que Dona Lucy, uma amiga de minha mãe, dava aula. Era uma sala grande, frequentada ao mesmo tempo por alunos do primeiro, segundo e terceiro anos. Era uma confusão, uma mesma mestra dar aulas para três séries na mesma sala e ao mesmo tempo. Entrei no mês de agosto e aos poucos me fui “aclimatando”. A maioria dos alunos era muito pobre e, embora minha família não fosse abastada, eu era o único aluno que usava sapatos para ir à aula. Como não gostava de andar calçado, consegui a anuência de minha mãe para ir descalço, igual aos outros alunos. Foi uma conquista, uma sensação de liberdade. A escola ficava uns quinhentos metros da casa de meus avós e eu acompanhado de vários garotos íamos e voltávamos a pé, conversando e brincando pelo caminho. Nada desses perigos atuais: pedófilos, sequestro, roubos, bullying, etc. Ás vezes um desentendimento que acabava em briga, sem grandes consequências, um olho roxo, um lábio inchado. Coisas de moleque.

Antes do advento dos supermercados, havia as “vendas” ou “armazém de secos e molhados” distribuídos pela cidade, onde as pessoas compravam “mantimentos”, que hoje chamamos de “gêneros alimentícios”, materiais de limpeza e produtos de uso geral. Os fregueses mais fiéis eram “fregueses de caderneta”, cujas despesas eram pagas periodicamente, a cada quinze ou trinta dias, sendo as compras anotadas em uma caderneta, daí o nome. Nossa família era freguês de caderneta do armazém do Figuerôa. Era um pequeno armazém de secos e molhados que ficava próximo de onde se situa hoje o Supermercado Figuerôa, mas na outra pista, que na época era de terra. O freguês entrava, tinha um grande balcão com tampo de mármore ao fundo e um salão pequeno com três mesas para aqueles que consumissem bebidas no local. No dia a dia, o seu Carmerindo, negro velho e pai da minha mãe negra Alzira, fazia pequenas compras. E aproveitava para tomar uma cachacinha, que ninguém é de ferro. Seu Figuerôa anotava: “01 pinga”. Tanto que certo dia minha irmã Ieda ao ler a caderneta disse à minha mãe: “- Tá tudo pingado!”. Uma vez por semana fazia-se uma compra maior e ai sim. Eu esperava por esse dia e, com minha mãe Zeny, ia às compras com um único interesse: comer uma paçoquinha de amendoim com guaraná. Só havia a paçoca quadrada, embalada em um papel manteiga. Chegava ao armazém, eu fazia meu pedido antes da minha mãe. Levava a paçoca e o guaraná para a mesa que ficava junto à parede, sentava. Lentamente para não cair nenhum farelo, não por cuidado, mas para não desperdiçar um grão sequer, abria o envelope e comia a paçoca em pequenos bocados, intercalados com um gole tomado diretamente na garrafa de guaraná, enquanto minha mãe comprava. Seu Figuerôa era lusitano, bigode e cabelos brancos, gordo e muito atencioso, sempre usava sob a camisa aberta uma camiseta branca. Ao me ver, abaixava-se e abria a porta da geladeira sob o balcão, reaparecia com o guaraná em uma das mãos. A seguir apanhava a paçoca naqueles baleiros giratórios de vidro com dois andares e me entregava. Só de lembrar volto a ter a sensação de então da delícia que era uma simples paçoquinha com guaraná.

Paulo MIorim 03/05/2018

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 03/05/2018
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