Cortei carnes, cortei pêlos, cortei couro de bolsas, de sapatos e
de almas.
Cortei fino, profundo e geometricamente.
Perfiz a multiplicação por meio da divisão invisível da matéria.
Fiz a partilha em vida, do corpo e da alma.
E, ainda na penumbra, a luz giletava as trevas em espasmos e flashes,
revelava a natureza. A origem das fontes.
O dialeto do silêncio. E, dentro do mais profundo templo.
Nas orações encriptadas nos corações.
A gilete orava para a ressurreição. Pelo vigor físico e dialético dos fiéis.
Pela paz que não havia.
Pela misericórdia que não havia.
Cortei papel, metal e tecidos. Rasguei cartas de amor. Promessas vãs.
Rasguei versos pecaminosos.
E cortando fino, as cortinas, transfigurava a ressureição.
Num esplandor silente e envergonhado.
E, na brincadeira de claro-escuro, a esfinge solicitava-me a senha.
Cortei tão superficalmente. Quase imperceptível
O sangue brotava delicadamente como orvalhos. Em gotas sutis de cheiro nobre
de animal abatido.
Na caça diária de todos nós. Desatamos os nós, as tranças e liberamos
as âncoras.
Nada mais nos prende.
Nem o navio e nem o mar.
Nem o céu e nem o inferno
Somente o Cântico dos cânticos entoava a trilha a ser seguida.
Caminho sem pertencimento e sem volta.
Em silêncio.
Hirta, andando no cadafalso do destino.
Assumindo o verbo e o pó do tempo
Prosseguia com a inércia da paixão.