O trabalho em tempos de cólera

O trabalho, enquanto constructo social tomado pelo capitalismo, tem sido uma de minhas preocupações centrais há longa data, principalmente no que tange sua ausência, seu exercício e suas consequências em um país mergulhado em desigualdades e misérias. Um país cuja globalização econômica e o modelo neoliberal modificaram as dinâmicas de trabalho, configurando um quadro de terceirização, subcontratação, ampliação da jornada, precarização das relações, fechamento de indústrias, degradação do emprego público e desemprego, gerando intenso sofrimento psíquico, doenças, acidentes e suicídios de trabalhadores. Teço aqui, brevemente, três momentos de minha curta trajetória mundana que me fizeram refletir e nos servem como dispositivos para repensar, re(des)construir e considerar o trabalho como elemento fundamental da organização social brasileira.

Primeiro: fui socializado, como muitos de minha geração, numa lógica em que o trabalho torna-se, por si só, a identidade, e o sujeito é valorado pelo que exerce e pelo quanto vale. A profissão-emprego-trabalho torna-se fundamento social, objetivo de vida, a maneira de enxergar e ser enxergado no mundo. A sociedade se divide entre os dignos (com bom emprego e boa remuneração) daqueles não-dignos (desempregados ou com trabalhos precarizados – os pobres). Uma divisão radical de classes, onde o status e o poder são centrais na dinâmica da vida e da sociedade, cujas desigualdades vão alicerças e estabelecer relações. Nessa lógica, tornamo-nos, a sós, responsáveis por aquilo que exercemos, como se o trabalho fosse uma causa-efeito de responsabilidade individual. Se és doutor, és porque mereces; se és catador, és porque não fez por merecer. Isso faz com que, desde a infância, tornemo-nos escravos pela busca de ascensão empregatícia, despendendo a vida e nossos tempos a nos tornarmos melhores e mais bem preparados em uma competição injusta, iníqua e voraz.

Segundo: reforcei minha preocupação quando, em uma pesquisa sobre o suicídio que realizamos no Rio Grande do Sul, estado historicamente com as maiores taxas de autoagressão do Brasil, fomos observando uma relação muito forte com o trabalho. Nas regiões fumageiras do estado, onde o suicídio é uma das principais causas de morte, o trabalho é extremamente precário, insalubre e mal remunerado. Localidades de colonização alemã-pomerana, parte católica e parte evangélica, regradas pela ética do trabalho, do dever e da honra que os leva a viverem vidas frugais, economizando o excedente e preocupando-se em não contrair dívidas ou gastos em excesso. Atingidos pela modernização produtiva, os pequenos agricultores assumem riscos, sempre na corda bamba entre o desejo de enriquecer e a dura realidade da perda da terra e do êxodo rural. Ao ouvir as histórias, constatamos que muitos haviam se enforcado nos galpões de fumo, como um ato de denúncia das condições de trabalho, e os familiares fizeram questão de mostrar as traves ou tesouras que serviram para amarrar a corda e onde encontraram o corpo morto pelo trabalho. Os galpões são construções rústicas, locais para a secagem e estocagem do fumo, espaço em que passaram grande parte da vida laboral, escravizados pelo trabalho estafante da lavoura fumageira. Suicídios no (e pelo) trabalho. Esse padrão nos levou a pensar que percorremos “a rota dos suicídios nos galpões de fumo”, mortes que denunciam o sofrimento e a impotência vividos por homens e mulheres presos em um modelo de trabalho que, a cada safra, elimina os que não conseguiram alcançar a produtividade ou a qualidade estipulada. Este fato não é restrito às regiões fumageiras, se estendendo a outras localidades do país, como pudemos constatar em outro estudo realizado em metrópoles brasileiras, que demonstrou um paradoxo interessante, cujo trabalho, seja seu excesso ou sua falta, pode levar ao suicídio.

Terceiro: toca-me profundamente o atual cenário de trabalho no Brasil, principalmente no recente período pós-golpe da presidenta Dilma, que significou uma taxa de desemprego galopante, atingindo 13% da população e um conjunto de quase 14 milhões de pessoas, em uma tendência ascendente. Cabe lembrar que o desemprego brasileiro no ano de 2014 foi de 4,8%, ano pós-eleitoral que deu início ao movimento de restrição e embargo econômico que favoreceu o golpe presidencial. Além do mais, somam-se a estes dados os trabalhos informais, precarizados, insalubres e mal remunerados. A perda de reposição salarial, em um momento cuja inflação e alta dos preços bateram os quase 5%. A reforma trabalhista, que extinguiu direitos fundamentais do trabalhador. Crônica de uma morte anunciada, em analogia à Garcia Marquez, diante das lambanças do atual governo brasileiro nos campos econômico, trabalhista e previdenciário. Embora este fato não atinja apenas àqueles diretamente atingidos, mas sim à população como um todo e à todo seu tecido social, obviamente ataca mais fortemente os pobres, os negros, as mulheres e as populações LGBTs, grupos historicamente discriminados em todos os âmbitos da vida.

O 1º de maio, Dia do Trabalhador, não é data para comemoração, principalmente diante destes tempos sombrios que vivemos. É dia de reflexão, pensamento, diálogo, luta e resistência. São tempos de nos unirmos. São tempos de nos colocarmos contra este capitalismo que nos retira a dignidade e a potência da vida. Trabalhadores: são tempos de cólera!