Os nonagenários

Nestas minhas andanças pela vida – andanças literais dos protocolos da boa saúde – volta e meia entro no túnel do tempo e revivo com muita clareza certos personagens que marcaram minha existência. Faço então um rascunho mental do que pretendo falar e, findo o exercício, vou à pena eletrônica e registro o que a mente esboçara. Há dias planejei falar sobre os nonagenários, que me visitaram a memória, mas o lufa-lufa cotidiano deixou-os engavetados. Falo, hoje, um pouco sobre todos os três, como me vieram bater à lembrança, quando andava e vi um jipe antigo.

Vi o veículo e me vi menino. Pequeno, tinha uns oito anos. Àquele tempo, vivíamos uma vida mais pacífica, e meus pais certamente me esperavam chegar da escola, sem grandes preocupações. Para chegar em casa, subia eu longo morro, carregando minha pasta escolar e muitas vezes o peso do sol na cabeça. Fazia sempre o trajeto a pé, indiferente a alguns veículos – à época poucos –, que subiam o morro, calçado de pedras. De vez em quando, era eu surpreendido por uma buzina amiga, de convocação para a carona. Waldir era um jovem senhor de aproximados quarenta anos; era meu vizinho e era mecânico. Jipe parado, o menino – suado e agradecido – entrava no carro e ia conversando com o motorista e assistindo àquela destreza de guiar e passar marchas. Uma aventura para uma criança pobre, cujo pai não tinha carro. Relembro aqui que esse meu amigo me deixava na porta, com todos os cuidados e seguia viagem. A vida nos aproximou outras vezes e nunca voltamos àqueles bons momentos em que adultos reservavam um tempo – pequeno que fosse – para um agrado a um filho do vizinho.

Jipe parado. Buzina. Não, prezado e eventual leitor, não vou dizer a mesma coisa. É que o episódio é por demais parecido. O menino era o mesmo, o amigo era outro. Maurílio, também mecânico e vizinho, era amigo de meu pai e não suportava me ver em sacrifício para subir o morro. Parava, e me levava, e conversávamos um pouco. E eu seguia descansado para continuar meu dia de criança.

Relembro esses dois personagens de minha infância, saudando a vida por premiá-los com longevidade saudável. Ambos, certamente perto dos noventa, ainda dirigem seus veículos e continuam pessoas solícitas – como têm sido por toda a existência. Homens resignados, cujo capítulo de profunda tristeza com a perda de dois filhos, não lhes tirou a fé e o bom humor. Sou-lhes grato e aqui o digo.

Dos jipes para os sapatos, veículos que protegiam meus pés. Hoje, o Carlinhos, lá no Calçadão, cuida deles com muito zelo. Naquela infância longínqua, eu mesmo os engraxava, mas a graxa às vezes se petrificava ou acabava. Então eu precisava do Isaías, um sapateiro de primeira. No seu banquinho, na oficina, com as ferramentas do ofício, ele atendia praticamente todo o bairro. Sem ganância. Eu nem precisava buscar os sapatos. Ele os entregava em mãos, brilhantes, lindos e, quando não havia conserto além da graxa, ele não cobrava. Dizia que era pela nossa amizade. O que seria a vida sem os amigos?

Isaías era um homem inteligente, tinha a sabedoria da vida. “Ne sutor ultra crepidam” – não suba o sapateiro além da sandália –, disse o pintor Apeles a um sapateiro que se atreveu, vendo uma pintura do artista, a dar opiniões que não versavam sobre sandálias. Isaías era inteligente, e falava – com português caprichado – de sapatos, de religião, de política, de mulheres. Sobre estas últimas, sentenciava que se Deus fez algo melhor do que elas, certamente reservou para si. E ria-se copiosamente.

Devo a esses nonagenários os capítulos de atenção, simpatia, desprendimento – pequenas lições que vamos aprendendo nesta vida. Aos velhos amigos velhos, um brinde fraterno!

Esta crônica terminaria no brinde. É o que fora rascunhado, como lhes disse; lembram-se? Não estava planejado relatar o passamento de um deles. Fico sabendo que Isaías se foi. Viveu e está muito além das sandálias.