TRAVES
03/03/2013
“Porque existirá sempre uma ponte entre o dia que morre e a noite que vem”, e a mudez de nossas carências rola feito água sob as estruturas.
Houve um tempo em que, menino ainda,elegi como espécie de refúgio uma velha macieira ao meio do quintal.Uma tempestade acompanhada de ventos muito fortes lhe havia quase derrubado.
Quase! Pois o vigor das raizes a fizera resistir.
Inclinada em seu tronco sustentava o emaranhado da ramagem abrindo-se em floradas e frutos assinalando por décadas sua existência.
Esquisitiçes à parte,mas à tardinha costumava eu enfiar-me entre seus galhos e da parte mais elevada ia em silêncio, sorvendo a agonia dos dias. Por vezes o ar carregado do cheiro das vassouras de mato ,evocava mel em colméias. Noutras,embalsamava-se ao odor das defumações pela vizinhança.(Tia Lucinda , depois de varrer os terreiros, espalhava algumas pedrinhas de incenso bento e capim cidró e ateava fogo .
[ A tarde ganhava ares de templos bizantinos ]
Dos ecos que chegavam de longe, talvez a voz quase melancólica de dona Lúcia repontando o gado, tenha sido o mais marcante.Depois, os rádios ligados na Hora do Ângelus, algumas cantigas dolentes pelos carreadores ,e resmungantes queixumes nos rodados de carroções à caminho das colonias de lavradores.
Do alto da macieira eu avistava as poucas casas pelas cercanias, e o campo era um tapete verde rasgado ao meio pelo charco das margaridas.O sol ia se pondo e,do outro lado do charco, o casarão dos Iarema - que dizia-se mal assombrado - escurecido em suas paredes, atiçava-me.
Uma estranha solidão o habitava e daquelas janelas desbeiçadas brotavam segredos indecifráveis.
Quando maçãs ofereciam-se generosamente ao meu redor, era verão ! Depois, galhos despidos diziam-me de outonos, de invernos...
[ Encolhido ao meio deles ,eu fazia “a travessia”]
Uma blusinha de lã,surrada,os mesmos ecos,os mesmos cheiros...E a minha solidão de menino ,varada de ventos gelados.
(Sim,porque meninos também sentem solidão e não sabem muito bem como explicar. Abotoam,simplesmente,em seus corações criança.)
Sem macieira,carroções ,charco das margaridas, refugio-me agora numa janela aberta para o fim do dia. Caladas, pessoas cruzam à minha frente,como que fora um desfile onde estranhas solidões vazam pelas janelas desbeiçadas de suas almas.
Remetem-me ao casarão escuro do outro lado do charco. Um pequeno grupo ruma à passos largos enquanto os sinos dobram.( Hora do Ângelus,presumo).Arde-me em pensamentos odores de incensos de Tia Lucinda.
Um carro passa em baixa velocidade.O som é devastador.A música ?...De gosto discutível. O motorista, muito jóvem ainda,tem uma aparência triste.”Solidão abotoada no peito”, atino com meus botões,destas que êle talvez não saiba muito bem como explicar.
Na rua de baixo, um caminhoneiro, na tentativa desesperada de venda,brada em auto falante a preciosidade da dúzia de mangas ao prêço módico de três reais.
Nenhum cliente por perto...O ronco abafado do motor remete-me aos queixumes de rodas dos carroções de feno.Num céu já quase escurecido a lua - cheia de tudo - espia-me por trás da cerejeira.
O som que me vem de um dos aposentos é do sorridente apresentador de TV indagando:
”Quem quer dinheiro?”.
Não mais aquele menino...Um adulto, e bota adulto nisso, vejo-me revestido ainda de uma solidão que não se explica.
Limito-me à deixa-la simplesmente abotoada em meu coração.
E, feito o piazito da macieira , percebo-me ainda fazendo "a travessia..."
Joel Gomes Teixeira
03/03/2013
“Porque existirá sempre uma ponte entre o dia que morre e a noite que vem”, e a mudez de nossas carências rola feito água sob as estruturas.
Houve um tempo em que, menino ainda,elegi como espécie de refúgio uma velha macieira ao meio do quintal.Uma tempestade acompanhada de ventos muito fortes lhe havia quase derrubado.
Quase! Pois o vigor das raizes a fizera resistir.
Inclinada em seu tronco sustentava o emaranhado da ramagem abrindo-se em floradas e frutos assinalando por décadas sua existência.
Esquisitiçes à parte,mas à tardinha costumava eu enfiar-me entre seus galhos e da parte mais elevada ia em silêncio, sorvendo a agonia dos dias. Por vezes o ar carregado do cheiro das vassouras de mato ,evocava mel em colméias. Noutras,embalsamava-se ao odor das defumações pela vizinhança.(Tia Lucinda , depois de varrer os terreiros, espalhava algumas pedrinhas de incenso bento e capim cidró e ateava fogo .
[ A tarde ganhava ares de templos bizantinos ]
Dos ecos que chegavam de longe, talvez a voz quase melancólica de dona Lúcia repontando o gado, tenha sido o mais marcante.Depois, os rádios ligados na Hora do Ângelus, algumas cantigas dolentes pelos carreadores ,e resmungantes queixumes nos rodados de carroções à caminho das colonias de lavradores.
Do alto da macieira eu avistava as poucas casas pelas cercanias, e o campo era um tapete verde rasgado ao meio pelo charco das margaridas.O sol ia se pondo e,do outro lado do charco, o casarão dos Iarema - que dizia-se mal assombrado - escurecido em suas paredes, atiçava-me.
Uma estranha solidão o habitava e daquelas janelas desbeiçadas brotavam segredos indecifráveis.
Quando maçãs ofereciam-se generosamente ao meu redor, era verão ! Depois, galhos despidos diziam-me de outonos, de invernos...
[ Encolhido ao meio deles ,eu fazia “a travessia”]
Uma blusinha de lã,surrada,os mesmos ecos,os mesmos cheiros...E a minha solidão de menino ,varada de ventos gelados.
(Sim,porque meninos também sentem solidão e não sabem muito bem como explicar. Abotoam,simplesmente,em seus corações criança.)
Sem macieira,carroções ,charco das margaridas, refugio-me agora numa janela aberta para o fim do dia. Caladas, pessoas cruzam à minha frente,como que fora um desfile onde estranhas solidões vazam pelas janelas desbeiçadas de suas almas.
Remetem-me ao casarão escuro do outro lado do charco. Um pequeno grupo ruma à passos largos enquanto os sinos dobram.( Hora do Ângelus,presumo).Arde-me em pensamentos odores de incensos de Tia Lucinda.
Um carro passa em baixa velocidade.O som é devastador.A música ?...De gosto discutível. O motorista, muito jóvem ainda,tem uma aparência triste.”Solidão abotoada no peito”, atino com meus botões,destas que êle talvez não saiba muito bem como explicar.
Na rua de baixo, um caminhoneiro, na tentativa desesperada de venda,brada em auto falante a preciosidade da dúzia de mangas ao prêço módico de três reais.
Nenhum cliente por perto...O ronco abafado do motor remete-me aos queixumes de rodas dos carroções de feno.Num céu já quase escurecido a lua - cheia de tudo - espia-me por trás da cerejeira.
O som que me vem de um dos aposentos é do sorridente apresentador de TV indagando:
”Quem quer dinheiro?”.
Não mais aquele menino...Um adulto, e bota adulto nisso, vejo-me revestido ainda de uma solidão que não se explica.
Limito-me à deixa-la simplesmente abotoada em meu coração.
E, feito o piazito da macieira , percebo-me ainda fazendo "a travessia..."
Joel Gomes Teixeira