Os rios correm apressados, o regato serpenteia entre montanhas, e descansa na bacia do mar. Assim também, a alma humana, um dia descansará em paz no oceano das águas criadas. Misturadas, criador e criaturas, como uma só água pura e cristalina. Longe, muito longe dali. A menina dos olhos não alcança a finitude. Tudo é tão belo como aurora que se põe no entardecer. A menina passa boa parte da vida, esperando ficar moça. Guarda a virgindade para o matrimônio, mas o homem é garanhão como um cavalo roncando atrás de uma égua no cio. Vil machismo: o que é pecado para a mulher, não o é para o homem. O dicionário também machista: registra só palavras masculinas, o gênero, se faz à parte. Há também outros livros que protegem o homem. Fala de mãe solteira, e não menciona o pai. Apedreja a mulher adúltera.
É o padrão social. Maldita regra que a sociedade dita. Ninguém reclama, ninguém grita. Mas no meio do caminho está um ancião de vestes brancas. Ele não atira pedras, só replica: “Mãe solteira não é estado civil.” Porém, a multidão de pecadores se irrita.
O bedel toca a sineta. É hora de ir para casa. Transeuntes num vaivém vão, outros vêm. Apressados, correm. Seguem assustados. Aflitos como galinha em território de gavião. O trem metropolitano parece parado na estação. Vultos velozes de homens e de mulheres passam voando, penduradas como blusas em movimento. Não dá tempo de reconhecer as bonitas que se misturam com as dentuças, banguelas, brancas, pardas, e amarelas... Homens de toda estatura: sérios, grandes, pequenos, negros e branquelos, corados, e amarelos. Boas e más criaturas voam vestidas de muitas cores e etiquetas: panos finos ou grosseiros guardam mulheres, homens e meninos, em suas etiquetas. Famosas e também as baratas compradas na feira livre viajam no metrô. Gente que tem pressa de chegar, outros tardios. Lentos corsários tomam de assalto uma presa. Apressados leopardos, trombam na calçada. Na plataforma é o trem que corre nos trilhos levando mulher, marido e filho nem sempre para o mesmo lugar. O trem chia, chegado. Fernão ocupava uma cadeira no primeiro vagão. Ravenala desembarca na Estação Carioca. O passageiro segue viagem. Nunca lhe dirigira a palavra senão, quando a perna da moça ficou presa no vão entre a plataforma e o trem.
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."