O homem que sabia voar
Will Eisner, foi um grande desenhista de quadrinhos, estadounidense, criador do “Spirit”, um detetive humano, cheio de falhas e que, na época dos super-heróis invencíveis, apanhava e eventualmente perdia para os bandidos.
Há uma história em quadrinhos em que o Spirit anda perseguindo um bandido na volta de um grande edifício. Eisner, cinematográfico, corta a cena de ação e mostra o interior de um escritório, onde um empresário caçador de talentos, arrogante, fumando um grande charuto, recebe um modesto e encolhido candidato. O empresário está muito ocupado para prestar atenção naquela figura minúscula e tímida. Que talento teria tal pessoa? Por que perderia seu tempo com ele? O homenzinho, depois de algumas tentativas, consegue dizer que sabe voar, mas o empresário ri dele e despreza a informação, indo logo atender outro chamado ao telefone. O homenzinho então resolve subir no parapeito da janela e se lançar. Ele dá algumas voltas em torno do edifício, voando sorridente e feliz. Mas o empresário está ao telefone, de costas para a janela e não vê o vôo. Enquanto isso, o Spirit começa a trocar tiros com o ladrão perseguido. Um dos tiros acerta então o homenzinho, que se estatela ao chão. É então que o empresário chega à janela e constata que o homem está esborrachado na calçada e lamenta o nível de loucura que o ser humano pode alcançar. Ninguém jamais soube do talento do homenzinho.
Moral da história: um amigo me ensinou a expressão “ouro enterrado”. Ouro enterrado não tem valor algum. Já contei esta história para diversas pessoas que enterram seus poemas e escritos nas gavetas de seus quartos. Por modéstia e timidez, escondem seus talentos. Querem ser descobertas à força. Talvez imaginem que, numa batida policial à caça de drogas, um policial sensível abra suas gavetas e, deslumbrado, resolva correr até uma editora e obrigar o editor a publicar aqueles poemas que irão mudar o mundo. Pura ficção. Os talentos têm que ser expostos e propagandeados. Senão, valerão tanto quanto ouro enterrado. Não há espaço para modéstia radical neste mundo. Fico surpreso de saber quantas pessoas exercem atividades artísticas para si, desenham, escrevem poemas e contos, cantam, pintam, fotografam, fazendo tudo às escondidas. Para estas pessoas há que se dizer que, infelizmente, todos estão muito ocupados, cuidando de si próprios e que, se ela quiser um pouco de atenção, vai ter que arriscar incomodar os outros, chamar-lhes a atenção, submeter-se a criticas, tolerar o descaso. O talento por si só não é suficiente para despertar o outro. Grandes e conhecidos talentos, como os Beatles ou Chico Buarque ou Bob Dylan ou Fernanda Montenegro, podem contar histórias de luta em início de carreira, histórias de falta de reconhecimento e frustração, que, ao invés de assustar ou servir de desestímulo, deveriam significar que não se alcança o reconhecimento sem batalha.
Algumas expressões artísticas foram muito facilitadas para quem tem acesso à Internet. Quase todas. Poemas e textos podem ser publicados em blogs, sem depender de editores ocupados, desatenciosos e arrogantes. Cantos, danças, cinema e atuações teatrais podem ser filmados e postados na Rede. Não há mais muita desculpa.
Aguardo novas manifestações dos talentos enterrados.