Meus amigos,
                    os coveiros
 


      1. Não me recordo do último enterro ao qual compareci. Evito-os porque tenho um excessivo medo da morte; sou um covarde tanatófobo. Não nego que me incomoda, que me constrange ficar horas e horas ao lado de um cadáver. Nada a ver com a solidariedade devida. 
     
2. Diante de um defunto, sempre me faço esta pergunta: afinal, o que é o morto? O poeta Affonso Romano de Sant'Ana define-o assim: "é o quadro negro apagado,/ a lição interrompida,/ o estádio abandonado,/ é o trem fora dos trilhos,/ verão sem cigarras e grilos,/ relógio sem mais alarme/ e uma alvorada sem galos". Ele está certíssimo. 
     
3. Para me acostumar com a morte, tenho visitado os livros de conhecidos mestres espíritas; eles são preparados para receber com naturalidade a visita dela, muito mais do que nós, católicos.
     
4. Assim, além de Chico Xavier, claro, tenho lido os livros, por exemplo, de José Carlos de Lucca e de Alexandre Caldini Neto. Do primeiro, recomendo "O jardim da minha vida", e do segundo, "A morte na visão do espiritismo". 
     
5. Muito bem.  Pode parecer uma inominável asneira o que, agora, vou dizer, ou seja, que sou um incansável admirador dos nossos coveiros.      Nos enterros, acompanho com atenção e carinho, o seu devotado e árduo trabalho. Por outro lado, posso assegurar que eles não recebem a atenção merecida, tanto da família como dos amigos do silencioso defunto.
     
6. Indiferentes a tudo e a todos, os sepultadores cumprem talvez as tarefas mais dolorosas nos sepultamentos; inclusive os que promovem a cremação e que o ritual não lhes permite aparecer.
     Que tarefas? Cabe-lhes depositar sobre o morto a última flor, mensageira da saudade dos que ficaram e fechar a porta da sepultura, fazendo desaparecer o que inda restava do fulano desencarnado...
     
7. No último enterro ao qual me fiz presente (!), enquanto jaculatórias eram rezadas, lembrei-me do soneto "O Coveiro" do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914).
     Transcrevo-o, porque me sinto incapaz de botar, numa pequena crônica, as homenagens com as quais pretendo lembrar meus amigos, os coveiros. 
     
8. "O Coveiro - Uma tarde de abril suave e pura/ Visitava eu somente ao derradeiro Lar;/ tinha ido ver a sepultura/ De um ente caro, amigo verdadeiro.  ==  Lá encontrei um pálido coveiro/ Com a cabeça para o chão pendida;/ Eu senti a minh'alma entristecida/ E interroguei-o: "Eterno companheiro  ==  Da morte, quem matou-te o coração?"/ Ele apontou para uma cruz no chão,/ Ali jazia o seu amor primeiro!  ==  Depois, tomando a enxada, gravemente,/ Balbuciou, sorrindo tristemente:/ "Ai, foi por isso que me fiz coveiro". 
     
9. Quando eu era menino,  fiz duas ótimas amizades na minha cidade. Aproximei-me do Joaquim do caixão e do Raimundo da igreja.      Joaquim era o queridíssimo coveiro-chefe do cemitério municipal e Raimundo o sacristão da igreja de Senhora Sant'Ana, a padroeira. 
     
10. Certa ocasião, perguntei ao Joaquim como ele se sentia enterrando as pessoas, entre elas velhos amigos seus. Ele me respondeu contando curiosas histórias sobre defuntos conhecidos e desconhecidos. E me falou sobre a morte, deixando cair uma discreta lágrima no seu rosto, caboclo e sério. 
     
11. Muito do que ouvi do coveiro Joaquim sobre a morte, está nos livros que tenho consultado, escritos por autores
conhecedores das coisas do além-túmulo.      Joaquim do caixão, com quase meio século na arte de enterrar os mortos, era um sábio.
     
12. Por fim, queria dizer, que apesar das lições do amigo Joaquim e dos mestres espíritas, continuo com medo da morte.
     E cada vez mais admirando o trabalho dos nossos coveiros que, a qualquer momento poderão me levar, nos seus braços caridosos, à minha definitiva morada...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 29/04/2018
Reeditado em 02/12/2019
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