POR PIEDADE

POR PIEDADE

Nelson Marzullo Tangerini

Nasci em Cascadura, na Maternidade Ângelo Philpo, que já nem existe mais. De lá, vi para Piedade, onde vivi mais de 60 anos de minha vida. Na casa onde moro, com jardim e quintal, como toda casa suburbana, morei com meus pais, Nestor e Dinah, e meus irmãos, Nirton e Nirson.

A casa é grande. E aqui recebíamos nossos parentes [artistas] e amigos [artistas], ainda que se localizasse numa travessa sem calçamento, com vala, borboletas e cobras. Nas ruas próximas, o calçamento era de paralelepípedo. Na via principal, Rua Clarimundo de Melo, antiga Estrada Rio - São Paulo, passavam os ônibus para Cascadura, Madureira, Coelho Neto [para cima] ou para o Méier e centro da cidade [para baixo]. O famoso bonde Piedade passava pela referida via e tornava mais poético o nosso bairro, cortado pela linha do trem.

Meu pai tinha amigos ilustres: os compositores Aldo Cabral, Ronaldo Lupo, Ataúlfo Alves, entre outros. Sentavam-se à mesa da sala e ali falavam sobre teatro ou música popular brasileira. Muitos eram membros da UBC [União Brasileira de Compositores] ou SBAT [Sociedade Brasileira de Autores Teatrais].

Meu pai, Nestor Tangerini, era professor de língua portuguesa. Meus irmãos fugiam de suas aulas [um se tornou biólogo, enquanto outro se tornou físico], eu, curioso, gostava das aulas de português do mestre, um filólogo seguro.

Estudei na Escola Municipal Félix Pacheco, que ainda continua de pé, desafiando o tempo. Da sala de aula ouvia o bonde Piedade passando. Mas a minha paixão era mesmo o trem, que levava passageiros da Central do Brasil à Baixada Fluminense ou Zona Oeste ou da Zona Oeste ou Baixada Fluminense à Central do Brasil.

A Wikipédia diz que Piedade “nasceu no ponto onde hoje fica a Igreja de Nossa Senhora da Piedade. Do alto, é possível ter uma boa visão de como a região cresceu. Entre Madureira e Méier, Piedade começou a ser ocupada em meados do século XVIII. O bairro faz divisa com os bairros de Quintino Bocaiúva, Cavalcante, Pilares, Tomás Coelho, Abolição, Encantado e Água Santa.

Com a chegada do trem, vieram o progresso, mais moradores e um problema: o lugar ficou conhecido pelo nome da estação, Gambá. O nome foi dado por dom Pedro II, durante uma viagem. ‘No momento de expansão ferroviária do Império em direção à Zona Norte da cidade do Rio, o imperador resolveu fazer uma parada em uma região onde havia vários gambás. Por conta disso, o lugar ficou conhecido como Parada Gambá ou Estação Gambá’, explica o historiador André Nunes.

Como o nome Parada Gambá não agradava muita gente, uma moradora do bairro decidiu escrever uma carta para o diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil, no fim do século XIX. O texto era o seguinte: "Por piedade, doutor, troque o nome da nossa estaçãozinha". O apelo acabou dando certo. "O diretor respondeu: ‘Minha senhora, será feito. E o nome do bairro será Piedade’. Ela gostou, e o bairro ficou assim", diz o historiador”.

“Já com novo nome, o bairro ganhou ao longo dos anos quatro elementos marcantes”:

O River Futebol Clube, fundado em 1914 e que foi dirigido pelo Ministro Gama Filho, a igreja gótica do Divino Salvador, de 1910 e que tem no altar uma pintura em estilo modernista (Rua Divino Salvador); uma importante refinaria de açúcar, o Açúcar União, de 1927 e que hoje não funciona mais no local (Rua Assis Carneiro); a primeira Universidade do subúrbio carioca, a Universidade Gama Filho, fundada em 1939 pelo Ministro Gama filho. Fechada em 2014, a UGF, na época de fundação, chamava-se Colégio Piedade.

O escritor que vos escreve estudou no referido colégio.

Por Piedade passaram o compositor Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, que nasceu na Rua Gomes Serpa, a 23 de abril de 1897, o compositor Ataúlfo Alves, que morou na Rua Joaquim Martins, o teatrólogo e poeta Nestor Tangerini, a atriz Antônia Marzullo, o compositor Renato Barros, do conjunto Renato e Seus Blue Caps, e o compositor Adalberto Barboza, autor de Energia Azul, mais conhecido pela alcunha de Blau Blau.

Dizem até que a Jovem Guarda começou em Piedade, e que Roberto, Erasmo, Wanderleia, Wanderlei Cardoso, entre outros, frequentavam a casa de Renato.

No dia 15 de agosto de 1909, o escritor Euclydes da Cunha, sentindo-se traído, foi até a Estrada Real de Santa Cruz, hoje Avenida Dom Helder Câmara, em Piedade, com intenções de matar o militar Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Ana, ou morrer. Morreu assassinado por Dilermando. E o episódio ficou conhecido como a Tragédia da Piedade.

O bairro, que [dizem – e isto não é confirmado] foi o primeiro do subúrbio carioca a ter energia elétrica, já não tem mais correio nem teatro [Dina Sfat], também.

Piedade tornou-se um bairro esquecido e abandonado, em ruínas. As ruínas da Gama Filho, que um dia recebeu o Dr. Christian Barnard, são hoje o retrato de um passado glorioso.

Por Piedade, salvem o nosso bairro!

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 26/04/2018
Reeditado em 27/04/2018
Código do texto: T6320108
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