UM DEDINHO DE PROSA

(Proseando com expressões idiomáticas *)

Um amigo da onça me convidou para encher a cara, saborear um tira-gosto e bater papo. Combinamos o encontro no boteco do Biricutico, lá no Largo das Ideias, número 51, mas o careta é especialista em dar bolo. Compareci e nada do camarada.

Sei que marquei bobeira, curti a canjibrina sozinho, cuspi fogo, até rodei a baiana. Noutro dia esbarrei com ele entornando o caneco e logo se justificou, não fui ao encontro porque estava a assobiar e a chupar cana. Veio com essa baita desculpa esfarrapada, do tipo marca trapo e ainda emendou com uma conversa fiada de cair a cara.

Prometeu contar um fato de arrepiar os cabelos, recomendou que mantivesse a boca de siri. Falou pelos cotovelos.

Relatou que estava a namorar o filhote de cruz credo, a Dorinha, filha do Doutor Delgado, o delegado. Embora a moça fosse a verdadeira briga de foice no escuro ele estava todo prosa, dizendo ter encontrado a sua cara metade e, mesmo o pai dela pegando no pé se sentia num mar de rosas.

Fiquei com a pulga atrás da orelha e assuntei com os meus botões: nesse angu tem caroço, isto não está me cheirando bem, é um golpe do baú, esse sujeito sem eira nem beira está arrumando sarna pra se coçar.

Pedi para ele baixar o facho, mas de tão mamado que estava não me ouviu, o incauto cabeça-dura botou a boca no trombone e que deixara de sovar a corda, agora tinha com quem gozar, revelando que deitava e rolava na casa da regateira. Além de filar a bóia do sogrão, um pão duro de dar nó na tripa, vez por ou outra afogava o ganso na donzela. Mas como as paredes têm ouvidos algum sujeito de língua solta logo foi dedurar.

O doutor autoridade foi informado do tamanho desatino e para agravar estava enfurecido pelo assalto à delegacia, meliantes levaram tudo, até as chaves do xilindró. Ficou doido varrido alguém pagaria o pato e serviria de bode expiatório, sem dó.

Não deu outra, a casa caiu e o amigo da onça dançou, cortejou a donzela e partiu destra para a melhor, viajou para a terra dos pés juntos. Tanto chumbo ele levou, bateu as botas, abotoou o paletó.

Saiu em tudo quanto foi jornal, toda a mídia explorou retratos do falecido e manchetes em profusão: “Delegado não perdoa, sapeca pólvora“; “Safado molhou o biscoito e perdeu a vida”. Mas o rosto do finado eu não vi na televisão, só pude escutar. Meu aparelho está com defeito, só proseia, não tem feição.

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(*) = Conceituam-se como expressões idiomáticas aquelas que, perante os estudos linguísticos, são destituídas de tradução. Pode considerar-se que fazem parte daquilo que chamamos de variações da língua, uma vez que retratam traços culturais de uma determinada região. Dotadas de um evidente grau de informalismo são geradas por meio das gírias e tendem a se perpetuar ao longo de toda uma geração.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 26/04/2018
Código do texto: T6320104
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