RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA: CONVERSAS NOTURNAS
RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA: CONVERSAS NOTURNAS
Para quem não conhece, a Fortaleza de Itaipu foi construída encravada em um morro chamado Ponta de Itaipu, no extremo norte da Praia Grande, preservando a natureza do local, a preciosa Mata Atlântica. Concluída no começo do século passado com a finalidade de proteger, com seus canhões, a entrada do Porto de Santos do lado do continente, é repleta de lendas desde sua construção. Meu bisavô materno, o italiano Fortunato Taffi, era frentista (um pedreiro especializado em acabamento), trabalhou nas obras da Fortaleza e morreu ao cair de um andaime.
Eu fui um garoto terrível, levado, arteiro ao extremo. Criado até os seis anos dentro do Forte Itaipu, em Praia Grande –SP. Lá nasceram, por mãos de parteiras, minha mãe, meu tio Leonel, minha irmã Ieda e meu irmão Henrique. Eu tinha um espaço imenso para brincar, rodeado de montanhas e mar. Brincava com os filhos de militares que moravam na área interna da Fortaleza. Mas a minha maior atração era pelos animais que meus pais e avós criavam. Nós morávamos na casa oito, no meio de uma ladeira, que era muito grande. Conosco, moravam meus avós Margarida e Henrique, meus pais Ambrósio e Zeny, minha irmã Ieda, meu irmão Henrique, eu, minha mãe preta Alzira com sua filha bebê, Bernardina. Tinha lugar para todos, um quintal grande, porão imenso, na realidade um andar térreo, no qual as crianças passavam a maior parte do tempo. Os dias eram inteiramente dedicados a uma só atividade: brincar. Á noite escutava-se rádio e as conversas dos adultos. Era muito diferente de hoje, que as crianças passam o dia inteiro nas creches, em espaços fechados, e pouco aprendem do mundo. A gente conhecia as espécies de passarinhos, dava nome para as cabras, bodes, galinhas, cabritos, cachorros e papagaio. De manhã, uma gritaria do louro: ‘Louro quer café! Louro quer café! Louro quer café!”“. Minha vó colocava um pedaço de pão (os pães eram em “filão” um formato grande) molhado em café, e só assim o papagaio parava com seus gritos. Dois cachorros chamavam-se Gaúcho e Gauchinho. Acho que era para zoar meu pai, que havia nascido em Alegrete, Rio Grande do Sul.
Após o jantar, começavam as conversas, os adultos comentavam seu dia a dia, as mulheres participavam contando coisas domésticas. Uma espécie de Facebook ao vivo. Era um contato e troca de informações que não ocorre mais hoje. Lógico e natural que esporadicamente houvesse uma troca mais ríspida de palavras que traziam à tona ressentimentos e diferenças pessoais, uma verdadeira terapia de grupo grátis e espontânea. Sem grandes rancores ou mágoas após lavar umas roupas sujas. Havia também a parte dos “causos”, contados pelos mais velhos. Enquanto uma pessoa falava, as outras escutavam sem interromper o narrador. Contavam-se muitas estórias ocorridas no Forte Itaipu. A maioria dessas estórias era de assombrações, de ocorrências inexplicáveis, tragédias e que tais. Eu sempre fui medroso e alguns desses “causos” fizeram que perdesse noites de sono. Nessas ocasiões, ia deitar na cama dos meus pais.
Hoje posso dizer que foi uma infância rica em experiências, cujas lembranças levo comigo como um patrimônio pessoal. Uma infância fantástica. Morei no Forte de Itaipu até os cinco anos, mas tenho a impressão que foi uma eternidade, tanto que amo essas recordações. Eu, criança, não tinha noção de ser um privilegiado e curti intensamente meus primeiro anos de vida. Dois ou três dias por semana, um ônibus levava os oficiais para passeios ou cinema, em Santos ou São Vicente. Quase cotidianamente íamos à Prainha dos Oficiais. Como dizem os lusitanos, éramos habitantes atlânticos, tal nossa interação com o mar.
Belo dia aparece o coronel Valter, amigo de meu pai, com sua esposa Maria e filhos Cesar e Soninha. Meu pai iria fazer um curso de Motomecanização, pelo Exército, no Rio de janeiro. Em um belo carro (Nash ou Buick) , viajamos para o Rio, onde iríamos morar por um ano, tempo que duraria o curso de meu pai. Fomos convidados pelo Coronel a permanecer na casa dele, que ficava na Vila Militar, até meu pai alugar uma casa para morarmos. A casa que o Exército cedia para um coronel era de alto padrão. Coronel Valter não conhecia meu potencial, minha capacidade de criar problemas para os adultos.
Paulo Miorim 26/04/2018